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No fim da estrada
A história está juncada de revoluções traídas. Escrito sobre a russa de 1917, Animal Farm,
de Orwell, podia ser sobre quase todas: à esperança e ao deslumbramento
iniciais seguem-se o terror de ver outros (ou os mesmos) tomarem o
lugar dos antigos senhores.
Poucas - não vamos debater se o 25 de
Abril foi ou não uma revolução - podem ser 40 anos depois celebradas sem
que o essencial da sua promessa se tenha perdido. Mas por mais que haja
quem, reclamando-se dos alvores abrilistas, decrete que do dia inicial
de Sophia só resta um encantamento amargo, não é assim. Todas as suas
grandes promessas foram cumpridas. A quem afiança que "há liberdade mas"
e prossegue com "não há verdadeira democracia", ou "verdadeira
justiça", ou "verdadeira igualdade", certificando até, em alguns casos
(entre os quais pontua, incrivelmente, Mário Soares), "viver-se pior
agora do que pré-74", só podemos apontar o caminho do Instituto Nacional
de Estatística.
A paz, o pão, a habitação, saúde, educação - todas as reivindicações da canção Liberdade,
de Sérgio Godinho, se concretizaram. Tínhamos uma guerra estulta e
brutal - 169 mil soldados foram enviados para as colónias, morrendo mais
de 8000 - e deixámos de ter. Havia fome - calcula-se que 10% da
população portuguesa emigrou nos anos 60, grande parte "a salto", para
engrossar bairros de lata nos países de destino - e hoje, persistindo
carência, desemprego e exclusão, não há comparação possível.
Havia
dezenas de milhares de barracas - grande parte das casas eram como
barracas - e hoje são uma realidade residual. Havia números de
mortalidade infantil africanos, uma rede hospitalar incipiente, e temos
hoje um Serviço Nacional de Saúde que ombreia com os melhores e uma
mortalidade infantil entre as dez mais baixas do mundo (só entre 1990 e
2011 diminuiu 77%).
Em 1970, a taxa de analfabetismo raiava os 30%, hoje
é 5%; a taxa de escolarização no secundário era 3,8%, agora é 72,3%; os
doutoramentos contavam-se anualmente em dezenas, agora são milhares.
Quem,
do PC ao PNR, passando por este Governo de maçães, resume os 40 anos a
"desperdício", "corrupção" e "traição" não está bem da cabeça.
Outra
coisa é dizer que é tudo perfeito, que chegámos ao fim da estrada da
canção de Gomes Ferreira (o escritor, não confundir). Aliás, a ideia de
que um golpe de Estado nos colocaria, por milagre, na terra do leite e
do mel, bastando-nos agradecer a dádiva, comunga da infantilidade amorfa
que nos fez, como país, aguentar 48 anos de uma ditadura tacanha.
Se há
falhanço nestas quatro décadas é esse - o de tanta gente achar que a
política é uma coisa que lhe acontece, não algo que se faz. Ter nojo
"dos políticos", achando que "são todos iguais", entregando-lhes ao
mesmo tempo o destino, é capaz de ser uma grande estupidez - e para isso
é que, de certeza, não foi feito o 25 de Abril.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
25/04/14
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