.
O trabalho
e o salário mínimo
1-
Esqueçamos por um momento o facto de o primeiro-ministro ter dito há
menos de seis meses que a subida do salário mínimo iria gerar mais
desemprego e que, logo, era uma medida errada. A questão é tão
evidentemente provocada pela campanha eleitoral e é tão ao arrepio de
tudo o que o Governo vem apregoando - baixar salários é,
confessadamente, o objetivo - que não haverá português que não perceba o
intuito.
Tentemos ter uma conversa mais séria sobre o assunto.
O
debate sobre o salário mínimo é, entre outros aspetos, um excelente
exemplo da maneira como as questões económicas se sobrepuseram às
políticas e, sobretudo, como alguns olham para a economia não como um
instrumento mas como um fim em si mesmo. Mas, mais que tudo, como se
tiraram as pessoas, e os seus direitos e valores mais básicos, do centro
das decisões que importam à comunidade.
Há quem diga que o
salário mínimo tem de descer ou mesmo acabar, argumentando que isso não
só daria mais competitividade às empresas como contribuiria para a
descida do desemprego. Do outro lado, são expostos argumentos sobre o
impacto no consumo que uma subida ainda que pequena do salário mínimo
provocaria e os benefícios que isto traria para as empresas e a
economia.
Não é meu propósito refletir sobre os argumentos
económicos, sendo-me porém evidente que empresas que baseiam o seu
modelo de negócio em baixos salários numa economia aberta estão
condenadas ao fracasso. Como, por outro lado, subir o salário mínimo (os
valores de que se fala são perfeitamente equilibrados, é bom que se
diga) sem refletir sobre as possíveis consequências imediatas para o
tecido empresarial, apenas com o argumento de que uma subida do consumo
ajudaria a economia, será tudo menos um comportamento avisado.
Não
foi por razões macroeconómicas que se instituiu o salário mínimo, nem
essas devem ser centrais na discussão. Muito longe disso.
Andamos
esquecidos da verdadeira função do salário mínimo e do que ele
representa para as democracias ocidentais: dignidade do trabalho. E a
exigência no cuidado dessa dignidade é cada vez maior.
O aspeto
essencial, aquele que convém nunca esquecer, é que o salário mínimo
visava e visa assegurar que quem trabalha teria não só as suas
necessidades básicas satisfeitas, mas também um conforto mínimo. Só um
salário que permitisse a um trabalhador viver com dignidade, promoveria e
valorizaria o trabalho. No fundo, uma forma de reafirmar o trabalho
como fator central entre os outros meios de produção e como pilar
fundamental da comunidade. Era, e é, assim vital, que a mais baixa das
retribuições garantisse sempre mais que a simples sobrevivência. No
limite, asseguraria que quem trabalha não fosse pobre.
Não é, nem
nunca foi, o caso português. Portugal é um dos países onde trabalhar não
significa sair da pobreza - não será preciso explicar que um agregado
familiar, em que os dois cônjuges ganhem o salário mínimo, vive na
pobreza.
E o pior é que a tendência para que mais e mais gente
ganhe apenas o salário mínimo tem-se acentuado: em 2003, 4,5% da
população empregada recebia o salário mínimo; em 2011, esse número subia
para quase 11% - falar de produtividade, de motivação ou de valorização
do trabalho com o salário mínimo português é quase insultuoso. E esses
valores dispararão nos próximos anos. É esse o modelo económico que está
a ser seguido e será um aspeto decisivo para um sério retrocesso do
nosso país em termos económicos e sociais.
As comunidades
europeias procuravam assegurar a importância fulcral do trabalho. O seu
papel central na comunidade, com raízes bem fundadas na doutrina social
da Igreja e no pensamento social-democrata. A questão da importância do
trabalho, da sua ética, foi um dos pontos fundamentais no consenso
europeu do pós-guerra e na construção da Europa.
O trabalho não
pode ser olhado, apenas, como um bem transacionável. Ele é uma parte
fundamental do que nós somos, da nossa personalidade e do nosso lugar na
comunidade.
No momento em que o valor do trabalho fosse só o
resultado da lei da oferta e da procura, sem limites, uma pessoa não
seria distinguível duma soma de dinheiro ou dum terreno arável. O que
isso provocaria à comunidade seria devastador. Uma comunidade que não
promove o trabalho e que não o valoriza acima de tudo é uma comunidade
condenada.
Nunca, como hoje, foi tão importante defender a função
social basilar do trabalho e um salário mínimo condigno. É que estão
mesmo sob ataque. Ninguém se iluda com propostas de campanha eleitoral.
2- A
carga fiscal já representa 41,1% do PIB. A micro- consolidação
orçamental alcançada, os ligeiríssimos sinais de melhoria foram
alcançados à custa de um aumento brutal da carga fiscal que gerou um
empobrecimento, também, brutal dos portugueses. Numa palavra: tanto
esforço para nada. E onde é que incidiu o maior crescimento de impostos?
Claro, sobre o trabalho.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
13/04/14
.