30/12/2014

EVA GASPAR

.


Números e causas
 da desigualdade

Que estamos mais pobres, não há grande dúvida - nós e boa parte do velho primeiro mundo. Mas estaremos, os portugueses, mais pobres e ainda menos iguais? Terão as políticas de austeridade agravado as desigualdades?
.
Uma das primeiras instituições que tentaram responder a esta pergunta foi o FMI. Nos seus cálculos, entre 2008 e 2012  - período que começa logo a seguir à crise financeira e que termina ainda com a troika cá dentro -, Portugal foi um dos países que seguiram políticas mais progressivas, ou seja, que penalizaram mais as famílias com maiores rendimentos. Sustenta o FMI que as medidas destinadas à redução do défice público geraram uma perda média de 6,3% no rendimento disponível (na Grécia, por exemplo, a redução foi de 11,6%), tendo os  20% mais pobres perdido 5% enquanto os 20% mais ricos perderam o dobro, um pouco mais de 10%.

Na semana passada, a OCDE divulgou uma tabela comparativa que abrange sensivelmente o mesmo período e que converge para conclusões idênticas: o rendimento real disponível dos portugueses (descontados os impostos e a variação dos preços) encolheu, em média, 2,3% por ano. Esse empobrecimento foi mais acentuado na Grécia (-8,3%), na Irlanda (-4,2%) e até em Espanha (-3,6%). E, ao invés do que sucedeu nestes três países, em Portugal os 10% mais ricos perderam mais (3,7%) do que os 10% mais pobres (1,9%).

Os indicadores de desigualdade mais recentes do Eurostat e INE resultam de inquéritos realizados em 2013 sobre os rendimentos de 2012 e descrevem uma evolução menos consistente. O coeficiente de Gini desceu de 0,345 em 2008 para 0,342 em 2012, o que significa que o país está menos desigual quando se observa como a população se distribui ao longo de toda a curva de rendimentos. Já quando se comparam os extremos, a distância de rendimento entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres manteve-se (em seis) mas o fosso entre os 10% mais ricos e os 10% mais pobres aumentou, de 10,3 para 10,7 – ou seja, os 10% mais ricos tinham, em 2012, quase 11 vezes mais do que os 10% mais pobres.

Que estamos mais pobres mas não mais desiguais é, portanto, uma conclusão frágil mas perfeitamente possível. A não ser que a comparação do Gini (considerado o indicador maior da desigualdade)  tenha por referência 2009, precisamente o ano escolhido por uma professora de economia que escreve no Expresso para acusar o primeiro-ministro de estar "no mínimo equivocado" -  tivesse Aurora Teixeira escolhido qualquer ano mais para trás ou para a frente e ter-se-ia dado conta de que a sua conclusão estaria, no mínimo, tão equivocada quanto a de Passos Coelho. Ou seja, a narrativa pode ser positiva ou negativa dependendo do ano escolhido para começar a contar a história  recente da desigualdade em Portugal.

Inequívoca é a constatação de que sempre fomos um dos povos mais desiguais da Europa - quando não fomos mesmo "o" mais desigual. Foi o caso em 2005. Nesse ano, com a economia a crescer quase 1% (em 2012 caiu 3,2%) e com o desemprego abaixo de 9% (em 2012 saltou para 15,5%), Portugal foi o recordista da desigualdade na União Europeia, à frente de Bálticos, Roménia e Bulgária, com o Gini a atingir 0,381 e os 10% mais ricos a acumular rendimentos 12 vezes superiores aos dos 10% mais pobres.

Porque é que isto acontece?
Foi também o FMI quem, no início de 2013, primeiro ensaiou uma tentativa de resposta, e, embora haja muitos factores onde se podem procurar explicações para as assimetrias (níveis salariais e de instrução díspares, carga fiscal mal distribuída, evasão fiscal, corrupção), o Fundo foi directo à forma como são repartidas as verbas públicas postas ao serviço do Estado social.

E a conclusão foi a de que "por comparação com vários outros países da OCDE e da UE, as transferências sociais em Portugal asseguram mais benefícios aos grupos sociais com maiores rendimentos, agravando as desigualdades". Em 2009, ano que tomam por referência, os 20% mais ricos receberam 33,8% de todas as prestações sociais enquanto os 20% mais pobres receberam apenas 13,2%. Em média na UE, o quintil superior recebeu 24,8% das prestações sociais, enquanto o quintil inferior ficou com 16,3%.

Há duas semanas, usando agora dados de 2011, a OCDE chegava a uma conclusão semelhante: em Portugal, 40% das transferências sociais em dinheiro são canalizadas para os 20% mais ricos. Apenas o México apresenta uma concentração maior no quintil de topo da distribuição do rendimento (cerca de 55%). Para os 20% mais pobres, Portugal destina pouco mais de 10% do total das transferências em dinheiro. Na Austrália, Noruega e Dinamarca a proporção é a inversa.

Porque falham tanto as políticas sociais em Portugal na missão de contribuir para uma sociedade mais igualitária?

Mais de 80% do total das transferências sociais são pensões, e é graças a elas que muitos pensionistas escapam à pobreza e que os mais idosos têm também consolidado o seu estatuto de grupo etário relativamente mais rico.

Sucede que o sistema de pensões padece de vários entorses: "protege a actual geração de reformados enquanto coloca o fardo do ajustamento nos seus filhos e netos" e nem sequer é equitativo no presente, porque "40% da despesa com pensões beneficia os 20% que têm rendimentos mais altos", concluía então o FMI.

Parte da explicação desta assimetria reside no facto de os ex-funcionários públicos, que representam cerca de 15% de todos os aposentados, absorverem 35% de todos os gastos em pensões. "A pensão média da Caixa Geral de Aposentações (1.146 euros vezes 14 meses) é quase três vezes maior do que a pensão média no regime geral da Segurança Social (393 euros)". Mesmo assumindo que na vida activa tenha auferido o mesmo e realizado os mesmos anos de desconto, um reformado do sector público recebe uma reforma 15% superior à de um trabalhador do privado, concluia o Fundo.

Vivemos num país onde os quase três milhões de aposentados e reformados são hoje - e sê-lo-ão durante largos anos – o grupo eleitoralmente mais cobiçado, porque decisivo; e onde um Presidente da República, feitas as contas, optou por trocar o salário que destinamos ao mais alto dignatário da Nação pela reforma que trouxera do Banco de Portugal. Da próxima vez que ouvir Bagão Félix, Manuela Ferreira Leite, Freitas do Amaral ou Maria do Rosário Gama defenderem o "mexilhão", pense nisto.

IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
18/12/14


.

Sem comentários:

Enviar um comentário