26/11/2014

HELENA MATOS

.



A culpa não é de Sócrates. 
É nossa

Isto não tinha ser assim. Não tínhamos de ver um antigo primeiro-ministro a ser levado dentro de um carro pela polícia. Não tínhamos de ver o circo montado novamente à porta do DCIAP.

Isto não tinha ser assim. Não tínhamos de ver um antigo primeiro-ministro a ser levado dentro de um carro pela polícia. Não tínhamos de ver o circo montado novamente à porta do DCIAP. Não tínhamos de assistir mais uma vez aos políticos a perderem a face perante a justiça. Mas os portugueses quiseram que fosse assim. E tanto quiseram que em 2009, indiferentes ao que já se sabia sobre a actuação de Sócrates no Freeport e muito particularmente nessa vergonha nacional que foi o processo de licenciamento e construção da central de tratamentos de lixos da Cova da Beira, 2 077 695 eleitores lhe deram o seu voto para que continuasse como primeiro-ministro. É certo que o PS perdeu então a maioria absoluta mas note-se que não se pode falar de desastre eleitoral: em 2005, ano da grande vitória de Sócrates, o PS tivera 2 588 312.  Que Sócrates continuasse a obter mais de dois milhões de votos depois do que sucedera entre 2005 e 2009 diz muito sobre a nossa alienação de valores.

Aos olhos e ouvidos dos eleitores portugueses, tudo aquilo que em 2009 já se sabia sobre Sócrates – e era muito – a par do fascínio crescente e perigoso que este manifestava por um Estado agente de negócios não foi suficiente para que não lhe dessem maioritariamente o seu voto. Eram os tempos em que a líder da oposição era ridicularizada como “a velha” pela milícia dos assessores socráticos devidamente corroborados pelo riso escarninho dos humoristas de serviço a quem, vá lá saber-se porquê, Sócrates nunca inspirou muitas críticas. Eram os tempos em que criticar Sócrates valia telefonemas aos gritos para os autores desses textos (e sei do que falo por experiência própria) logo apelidados na mais bonançosa das versões como tremendistas, derrotistas e bota-abaixistas. Eram os tempos em que nada parecia possível ser feito em Portugal contra a vontade de Sócrates. Em que, por exemplo, nenhuma editora, que por essa época tudo ediatavam, quis publicar a investigação  – e tratava-se de uma verdadeira investição e não de palpites  – que um blogue, o Do Portugal Profundo, fizera sobre a licenciatura do então primeiro-ministro. E sobretudo eram os tempos em que se arreigou na sociedade portuguesa esse perverso princípio de que o direito penal substituira a moral.

Sentados em estúdios de televisão, rádio, nos jornais, blogues… todos os dias dirigentes socialistas e seus compagnons de route repetiam que tendo sido encerrados os processos e investigações só por má-fé se poderia questionar a licenciatura domingueira de Sócrates, a novela das suas duas fichas na Assembleia da República, os projectos para as casas da Covilhã, a nomeação para o Eurojust do procurador sobre o qual recaíra a suspeita de ter transmitido informações processuais a Fátima Felgueiras, o Freeport, a Cova da Beira…

Em Portugal passou então a vigorar o dogma de que não há diferença entre responsabilidade política e responsabilidade criminal. E exactamente os mesmos que tanto contribuíram para a impunidade de que gozou José Sócrates já começaram na velha técnica das cabalas: devia ser detido à noite? Porque não foi detido em casa? Que estranha coincidência, ser detido na véspera de António Costa ser reconhecido como secretário-geral do PS… Deixemo-nos de contorcionismos: não há dia ou hora adequados para prender um ex-primeiro ministro porque em todos os dias e a todas as horas a detenção de quem teve tais responsabilidades terá sempre consequências políticas. Por exemplo, o que vai António Costa, que entretanto divulgou uma primeira declaração equilibrada sobre este caso, fazer com o homem que escolheu para líder parlamentar, Ferro Rodrigues? Ferro Rodrigues continua sem perceber duas coisas essenciais: primeiro, um partido de bem não pode alimentar a nostalgia por um político com o perfil institucional de Sócrates, (sublinho que falo de pefil institucional e não de questões criminais). Segundo, Portugal é uma democracia onde não há partidos acima da lei e não um regime democrático tutelado pelo PS. Como em todos os processos que envolvem poder económico e político haverá quem aposte na confusão. Lembram-se do processo Casa Pia em que acabámos a não distinguir os pedófilos das vítimas, a justiça do abuso e a verdade da mentira? (Esperemos apenas que à actual PGR não esteja reservado o mesmo calvário que a Souto Moura).

Falam agora os políticos na possibilidade de uma república de juízes. Agora é tarde para o fazerem, “Inês é morta”. É de facto uma visão dantesca essa de uma república de juízes mas foram eles, os políticos, e neste caso particularmente os do PS, ao pôr de lado a moral e ao centrar tudo no avanço da justiça, ou mais precisamente na sua capacidade de fazer arquivar os processos, quem sentou um dos seus, Sócrates, no banco traseiro daquele carro utilitário que o levou do aeroporto até ao DCIAP. E foram os portugueses, enquanto eleitores, sancionando o comportamento de Sócrates, dando-lhe a vitória em 2009, quem depositou Portugal na mão das polícias e dos juízes.

Na vida nunca se volta atrás e na política muito menos. Por isso aqui estamos no beco a que nos conduzimos: se Sócrates provar a sua inocência ficamos a com a justiça descredibilizada. Se Sócrates for culpado estamos perante um problema político. Mas deste dilema os únicos culpados somos nós. E não Sócrates.

IN "OBSERVADOR"
22/11/14

.

Sem comentários:

Enviar um comentário