Na morte de Alpoim Calvão:
Como é que os portugueses
(não) souberam da Mar Verde?
Uma operação que dava um filme. Uma incursão que acabou a ser discutida nas Nações Unidas. Um resgate de prisioneiros realizado com êxito. A história da Mar Verde confunde-se com a de Alpoim Calvão.
Novembro de 1970. Sá Carneiro começa a publicar no “Diário Popular”
uma coluna designada “Sétima página” onde chama a atenção para a próxima
revisão da Constituição. Na avenida de Ceuta, em Lisboa, abre o
primeiro hipermercado português. Gabriel Cardoso era eleito o Rei da
Rádio. O Governo de Marcelo Caetano e o Episcopado da Metrópole
enfrentam-se por causa da frequência da disciplina de Religião e Moral. O
Sporting goleara o Boavista (8-0) e o Farense derrotou o Benfica (1-0).
Claro que em matéria de notícias nada concorria com a descoberta do Esquartejador,
um afinador de máquinas de costura, de aspecto sorridente e bonacheirão
que, segundo os jornais, a mulher deixara “porque tinha defeito”, e a
quem é imputada a autoria de vários homicídios unidos por denominador
comum: cadáveres de homens cujo rosto fora mutilado.
Politicamente havia a sobressair as bombas que a 20 de Novembro
explodem frente ao edifício conhecido como Escola da PIDE em
Sete-Rios, na Av. Duque de Loulé, junto ao Centro Cultural da Embaixada
dos EUA e no Cais da Fundição, em Santa Apolónia onde estava atracado o
paquete «Niassa». A ARA, organização terrorista criada pelo PCP, que
entretanto reivindicara o atentado contra o navio «Cunene», é
apresentada como a responsável por mais estes atentados mas não é ainda
associada ao PCP pelas autoridades. Na conferência de imprensa que dá
sobre estes atentados, Silva Pais, director da PIDE, declara que se está
perante “actividades maoístas”.
Mas algo mais se passava: na noite de 21 para 22 de Novembro, Alpoim
Calvão, à frente de uma companhia de comandos africanos e de um
destacamento de fuzileiros também na sua maioria africanos e de alguns
membros da oposição a Sekou Touré, presidente da Guiné Conackry,
desembarca em Conakri. Esta operação de nome “Mar Verde” tinha como
objectivos: provocar um golpe de estado na Guiné Conakry; destruir as
instalações do PAIGC em Conakri; capturar Amílcar Cabral e levá-lo para
Bissau e libertar os 26 militares portugueses que estavam detidos numa
prisão de Conakry. Alguns como o sargento Lobato há mais de sete anos.
As fugas de informação e a deficiente recolha de dados feita pela
PIDE na preparação desta operação têm sido as explicações para que nem
Amílcar Cabral nem outros altos quadros do PAIGC estivessem em Conakri e
que os aviões MIG que Portugal tinha como objectivo crucial destruir
também não estivessem no aeroporto. Vários serviços secretos
estrangeiros deviam estar ao corrente da preparação desta operação pois
foi à URSS que Portugal comprou, através da firma da família Zoio, as
armas que usou nesta operação.
Alpoim Galvão que tinha até ao amanhecer para poder executar a operação retira sem conseguir que Sekou Touré fosse derrubado.
Abandonados à sua sorte ficaram os opositores de Sekou Touré –
aqueles que tinham contado com o apoio português e aqueles que nunca
tinham mantido qualquer contacto com Portugal ou sequer visto um
português. Foram indistintamente chacinados nos dias seguintes. O
próprio bispo de Conakry, Raymoond Tscidimbo, acabou preso, torturado e
condenado a trabalhos forçados sob a acusação de golpismo. Enforcado
numa árvore de Bissau foi também Januário Lopes, um tenente guineense
dos comandos portugueses na Guiné que se entregou às forças de Conakry.
Januário Lopes que tinha um irmão no PAIGC partiu contrariado para esta
operação e uma vez em Conakry decide entregar-se às forças de Sekou
Touré. Portugal desvincula-se da presença de Januário Lopes e dos homens
que o acompanhavam em Conakry. Sekou Touré não os reconhece como
desertores do exército português e potenciais apoiantes do PAIGC. São
todos executados.
No que respeita à libertação dos presos a operação foi um completo
sucesso e um sucesso que raramente forças armadas doutros países
conseguiram em situações similares: os 26 militares portugueses que
estavam detidos numa prisão de Conakry foram resgatados sãos e salvos. À
excepção do grupo de Januário Lopes o exército português conta apenas
uma baixa
A 23 de Novembro começam a sair em Portugal notícias sobre a invasão
da Guiné Conakry “por mercenários”. São desmentidas pelo governo
português e por Spínola quaisquer interferências de Portugal nesses
acontecimentos. Nos dias seguintes Spínola desmente de novo a
participação portuguesa na invasão de Conackry.
A 29 de Novembro pequenas notícias dão conta que “conseguiram fugir
da República da Guiné portugueses ali detidos”. E a 30 de Novembro no
meio do grande destaque informativo sobre a aprovação do divórcio em
Itália – 319 deputados votaram a favor, 286 contra – fica a saber-se que
já estão em Lisboa os portugueses que oficialmente tinham fugidos das
prisões de Conackry.
Entre eles há um nome que se destaca: António Lobato. Fora preso em
1963. Tinha então 25 anos. Pesava 73 quilos. Volta com 33 anos e 48
quilos. Sempre declarou não ter sido maltratado pelo PAIGC e sempre
recusou assinar os papéis que o PAIGC lhe punha à frente com condenações
ao exército português, assinatura essa que lhe garantiria imediatamente
a sua libertação e colocação num país de leste.
Outros como Manuel Marques de Oliveira, Rafael Jorge Ferreira, Manuel
Augusto Silva, António Rosa e José Vieira Lauro tinham sido dados como
mortos. Os pais estavam de luto e nos jornais das suas terras saíra a
notícia das respectivas mortes.
Todos estes homens se comprometeram por escrito a não revelar as circunstâncias da sua libertação.
IN "OBSERVADOR"
30/09/14
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