16/10/2014

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HOJE NO
"i"

Banco de Portugal cedeu 
a Ricardo Salgado

Regulador alertou a 3 de Dezembro para riscos de insolvência da ESI, uma das principais empresas do GES, e deu 27 dias a Salgado para resolver os graves problemas financeiros do grupo. Banco de Portugal recuou pouco tempo depois.

Eram 19 horas do dia 3 de Dezembro de 2013 quando Ricardo Salgado recebeu uma carta demolidora assinada pelo então vice--governador do Banco de Portugal (BdP). Três horas depois de ter estado na sede do supervisor bancário, o então presidente da comissão executiva do BES não conseguia acreditar no que lia. Na carta assinada por Pedro Duarte Neves, o BdP dizia-se surpreendido com "o inusitado acréscimo" do passivo financeiro da Espírito Santo International (ESI), garantia que a dimensão da dívida era "susceptível de pôr em causa a solvência da ESI" e dava 27 dias ao grupo para executar um plano de ring fencing, isto é, o grupo teria de isolar o BES de todos os riscos emergentes das entidades não financeiras.

“O governador  começou por  dizer: olhe, nós  recebemos este  documento.  Revela uma  surpresa pela  carta que  receberam mas  nós é que  estamos verdadeiramente surpreendidos com o  aumento do  endividamento”
Ricardo Salgado
9 de Dezembro de 2013  
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Entre outras coisas, o GES teria de constituir até 31 de Dezembro uma conta bancária com o montante equivalente à dívida emitida pela ESI junto de clientes do Banco Espírito Santo (BES), ou seja, com o montante de cerca de 1700 milhões de euros. Só que, de acordo com documentos a que o i teve acesso, Ricardo Salgado protestou junto do Banco de Portugal e apresentou alternativas. Vinte dias depois, numa nova carta, o BdP apresentou um novo plano de acção diluído no tempo e mais próximo do que o GES tinha proposto.

A 17 de Dezembro, Ricardo Salgado dá os primeiros sinais de que o BdP fez cedências e traçou um plano menos exigente para o GES: a linha de crédito que devia ser de um montante igual ao total da dívida emitida em papel comercial passou, por exemplo, a ser de 750 milhões com a garantia das acções da Espírito Santo Finantial Group (ESFG) - a empresa da família Espírito Santo que detinha a participação no BES e que, na semana passada, pediu a falência no Luxemburgo.

“Estamos   plenamente   conscientes do  efeito sistémico  que qualquer  perturbação percebida pela  opinião pública  no GES teria  na economia  nacional nestes  tempos conturbados e difíceis que  vivemos” 
Carta do Conselho Superior  do GES entregue ao Banco   de Portugal a 3 de Dezembro   de 2013, às 16h

Além disso, esse empréstimo já não teria de ser conseguido até ao fim do ano, mas apenas em Janeiro. "Eles tinham pedido que levantássemos uma linha de crédito até ao fim do ano do montante da dívida. Isso ficou reduzido a levantar os 750 milhões com a garantia das nossas acções da área financeira, da ESFG, e esse crédito tem de estar lá durante o mês de Janeiro. [...] Vamos ter de nos envolver com alguns bancos internacionais", contou Ricardo Salgado aos membros do Conselho Superior.

Apesar deste contexto, em respostas enviadas ao i, o Banco de Portugal nega "qualquer redução no grau de exigências" do supervisor.

Já a 23 de Dezembro, numa carta endereçada ao presidente da ESFG, e citada no sábado pelo "Expresso", o BdP impunha outras medidas para separar o BES dos riscos decorrentes da área não financeira, como a criação de uma linha de crédito e a venda de activos pela ESI. A maior parte dessas obrigações ficou por concretizar. Só em Março, e devido ao incumprimento, o BdP obrigou a constituir uma provisão de 700 milhões de euros para cobrir o risco de não pagamento da dívida que tinha sido emitida na rede de retalho do BES.

“Eles tinham  pedido que nós  levantássemos uma linha de  crédito até ao  fim do ano do  montante da  dívida. Isso ficou  reduzido a  levantar os 750  milhões com a  garantia das  nossas acções  da área  financeira, a ESFG, e  esse crédito tem  de estar lá  durante o mês  de Janeiro”
Ricardo Salgado
17 de Dezembro de 2013 
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É com base nesta provisão, "com referência a 31 de Dezembro de 2013", e que teve em consideração "as conclusões do auditor externo", que o Banco de Portugal sustenta que não reduziu as exigências impostas ao GES. 

A provisão confirma que o GES não cumpriu o plano do BdP. Ainda assim, e apesar de já a 3 de Dezembro o regulador ter alertado para a falência da ESI, só três meses depois viria a ser constituída essa provisão e só seis meses depois, em Junho, toda a família Espírito Santo viria a ser afastada da liderança do BES. Em Julho, o BdP continuava a afirmar que a situação do banco estava "sólida" e não havia risco sistémico. Até essa data nunca tinha sido revelado que o grupo não tinha cumprido parte do plano que lhe havia sido imposto, por exemplo. A falta de informação já era olhado pelos mercados com desconfiança.

“Foi reportado um inusitado acréscimo (...) do passivo financeiro da ESI.(…) A evolução assume uma dimensão susceptível de pôr em causa a solvência da ESI”
Carta assinada pelo vice-governador do Banco de Portugal enviada a 3 de Dezembro de 2013, às 19h  
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O prospecto de aumento de capital do BES divulgado em Maio deixou o primeiro alerta: na origem dos problemas da ESI tinham estado "irregularidades materialmente relevantes". Uns dias depois, o "Expresso" ajudava a descortinar a mensagem, avançando que as contas da ESI apresentavam um buraco de mais de mil milhões de dívida. Esse dado constava de uma auditoria da KPMG que foi entregue ao Banco de Portugal a 30 de Janeiro. Carlos Costa viria a defender meses mais tarde que a ESI não estava debaixo da supervisão do BdP. Mas as novas informações a que o i teve acesso reforçam que o supervisor não só teve conhecimento da situação financeira da holding ainda em 2013 como interveio logo a 3 de Dezembro para tentar que o BES não fosse afectado por aquele descontrolo nas contas.

"Esta carta é inexequível"  
A história, que só começaria a ser conhecida em Maio, obriga a recuar no tempo até ao início de Dezembro. Quando Ricardo Salgado entrou na sede do BdP no dia 3, às 16 horas em ponto, acompanhado de três membros do Conselho Superior do GES e com uma carta na mão em que pedia tempo ao BdP, o supervisor já conhecia o desastre das contas da ESI. O BdP tinha incluído o ramo não financeiro do GES na lista de 12 grandes clientes bancários que viram as suas contas passadas a pente fino por empresas de auditoria. O exercício foi suficiente para destapar o montante da dívida e o montante do buraco da holding: como a análise obrigou o GES a apresentar um balanço consolidado da área não financeira, ficou a saber-se que a ESI tinha, a 30 de Setembro de 2013, uma dívida total de 6,3 mil milhões de euros e um buraco de 1300 milhões. Isto é, havia 1,3 mil milhões de euros de dívida que nunca tinha sido registada nas contas daquela holding da área não financeira do GES.

Estes números só viriam a ser divulgados publicamente em Maio, mas duas cartas de 3 de Dezembro - uma entregue ao BdP e outra enviada pelo regulador - mostram que nesta data o supervisor já conhecia a realidade financeira da holding. O BdP sempre assumiu, nomeadamente através de comunicados publicados no seu site, que teve conhecimento dos problemas da ESI desde o início de Dezembro sem, contudo, revelar os números que estavam em causa.

Na carta assinada por Salgado e outros três representantes da família Espírito Santo, estes reconheciam estar "muito conscientes da preocupação já expressa pelo BdP quanto à situação económica e financeira do GES", manifestavam um "total compromisso e comprometimento na procura de uma solução", mas pediam tempo para executar um plano de acção. A família defendia-se com o valor da "marca Espírito Santo" - que lhes daria "acesso privilegiado aos meios financeiros internacionais" - e com as consequências que um eventual "efeito sistémico" trariam à "economia nacional" nesses "tempos conturbados e difíceis".

Nesse dia 3 de Dezembro, o então líder do BES entregou a carta, conversou durante meia hora com o governador Carlos Costa e saiu satisfeito. De acordo com informações recolhidas pelo i, na reunião do Conselho Superior do GES de 9 de Dezembro, Salgado passou a mensagem de que a grande preocupação do BdP expressa naquela reunião era o papel comercial. José Maria Ricciardi, presidente do BES Investimento (BESI), acrescentou que o banco "tinha de arranjar uma solução para que os clientes fossem reembolsados" e Manuel Fernando, chairman da Rioforte, deu a tacada final: "A grande preocupação era isolar o papel comercial do retalho. Ficaram altamente surpreendidos por causa do desvio das contas e da grandeza do buraco."

A sensação de que tudo estava sob controlo durou apenas três horas. Às 19 horas, Salgado recebeu a carta assinada pelo vice- -governador do BdP, Pedro Duarte Neves. A primeira coisa que fez foi agarrar no telefone. Como não conseguiu falar com o governador porque Carlos Costa tinha seguido de viagem para Frankfurt, ligou ao vice-governador e disse-lhe: "Esta carta é inexequível, inexequível." O então presidente da comissão executiva do BES olhou para o calendário e começou a fazer contas: já só tinha 27 dias para executar o plano do supervisor.

Deadline a 31 de Dezembro 
 Que plano era esse? De acordo com documentos a que o i teve acesso, o supervisor fazia três exigências à Espírito Santo Finantial Group (ESFG), que deveriam ser cumpridas até 31 de Dezembro. Caso alguma das três diligências falhasse, o GES teria outra obrigação nas mãos. 

Na carta dirigida ao presidente da ESFG, o vice-governador assumia que havia sido "reportado um inusitado acréscimo, na realidade muito significativo, do passivo financeiro da ESI" - como o i já avançou, entre o último dia de 2012 e 30 de Setembro de 2013, a dívida daquela holding praticamente duplicou. A evolução, explicava a carta, carecia de "esclarecimentos adicionais" mas uma coisa já era certa para o BdP: a dimensão da dívida era "susceptível de pôr em causa a solvência da ESI". O alerta é de 3 de Dezembro de 2013. A família Espírito Santo só seria afastada seis meses depois. 

O BdP queria que o grupo fornecesse elementos que permitissem uma "clarificação plena e aprofundada dos factos" de forma a apurar eventuais responsabilidades. A par disso, o supervisor exigia que até ao fim do ano e "impreterivelmente" a área financeira eliminasse a exposição resultante "quer do financiamento directo ou indirecto quer da concessão de garantias" à ESI, do ramo não-financeiro. Que constituísse uma conta bancária, sem qualquer apoio financeiro "explícito ou implícito de actividades pertencentes ao grupo ESFG", com o montante equivalente à dívida emitida pela ESI e colocada na rede de retalho do BES. À data, de acordo com informações veiculadas por Salgado em reuniões do Conselho Superior do GES, o valor colocado em papel comercial no retalho rondava os 1700 milhões de euros.

As exigências não terminavam sem obrigar o grupo a apresentar um compromisso escrito até dia 10 de Dezembro. E caso todas estas acções não fossem executadas até ao fim do ano, o BdP avisava: o grupo teria de fazer "uma provisão nas contas consolidadas da ESFG correspondente às imparidades" que lhes viessem a ser imputadas no decorrer da avaliação da situação financeira da ESI.

Esse risco de agravar as contas da área financeira do grupo, que teria impacto nos rácios de solvabilidade do banco, teria de ser evitado a todo o custo. Afinal, explicaria Salgado aos restantes membros da família com assento no Conselho Superior, uma imparidade na ESFG "significava um valor" que não sabia "exactamente" qual era, mas sabia ser "elevado". Cumprir o plano exigido pelo BdP até fim do ano, ainda para mais no mês de Natal, era "impensável", "impossível".

Salgado estava em contra-relógio. Mobilizou uma equipa de trabalho, decidiu que teriam de "adoptar uma postura mais radical" junto do BdP e no dia 5 de Dezembro voltou a ligar para o vice-governador a avisar que iria enviar um "documento de reflexão extremamente confidencial": "Sr. vice-governador, esta carta é impossível de ser executada. Estamos a fazer-lhe chegar um papel que é um documento de reflexão para que o senhor pense nas implicações que isto pode ter se o BdP mantiver essa posição." Às 20 horas desse mesmo dia, o então presidente do BES foi chamado de novo ao Banco de Portugal. 

Carlos Costa, de acordo com informações transmitidas por Salgado aos familiares, tê-lo-á recebido com uma frase arrasadora: "Este documento revela uma surpresa da vossa parte pela carta que receberam mas nós é que estamos verdadeiramente surpreendidos com o aumento do endividamento do grupo." 

Alberto de Oliveira Pinto, então presidente do conselho de administração do BES, também presente na reunião, terá tentado explicar que seria difícil o grupo ir ao mercado levantar um empréstimo. O BdP, explicou Salgado à família, terá então se cingido a pedir uma escrow account - uma conta gerida por terceiros - que serviria para o grupo ir reembolsando o papel comercial à medida que este fosse vencendo. 

O Grupo Espírito Santo enviou uma nova carta ao BdP. E no dia 17 de Dezembro, Salgado voltou ao Banco de Portugal. Nesse mesmo dia, o então líder do BES disse numa reunião do Conselho Superior que tinha havido uma "redução do contexto em relação à carta inicial do BdP" e que as partes tinham chegado "a uma plataforma de entendimento".  

Pesquisa de  Margarida Vaqueiro Lopes 

* Já nada nos surpreende mas continuamos a enganar-nos, quem havia de dizer que o actual Governador do BdP era em tudo semelhante a Vitor Constâncio de má memória.


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