27/10/2014

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HOJE NO
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Abertas investigações por violência 
contra filhos adoptivos em Lisboa. 
O i conta algumas das histórias 

Maioria dos casos não passaram porém do Tribunal de Família e Menores por não se considerar que havia crime, mas apenas abandono afectivo 

Hora de ponta em Lisboa. Da janela do autocarro Maria vê a condutora do lado bater no filho. Não é uma bofetada leve nem uma chamada de atenção para sossegar uma criança desobediente. O episódio é tão violento que ela tira à pressa, da mala, um pedaço de papel e anota a matrícula para fazer uma denúncia, sem saber que a criança era adoptada. 


Josefa talvez não convencesse António a ter dois filhos se soubesse que poucos meses depois uma doença terminal lhe tiraria a vida e as duas crianças acabariam abandonadas pelo pai noutro país europeu, vítimas de maus-tratos e sem ir à escola. 

Estes dois casos não são únicos. Desde 2012, houve seis investigações do Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Lisboa a pais que maltrataram filhos adoptados, outros processos ficaram-se pelo Tribunal de Família e Menores por se considerar que se estava perante o abandono afectivo, situações que não configuram crime. 

Estas duas agressões contra adoptados - tal como as restantes - não são muito diferentes das que acontecem contra filhos biológicos, mas os magistrados do Ministério Público explicam ao i que deveriam ser analisadas para perceber o que poderá estar a correr mal nos processos de selecção. Defendem que um processo de adopção precisa de tempo para criar vínculos entre pais e filhos e que a aceleração dos últimos anos pode estar a pôr em causa esses laços. 

"Em alguns casos são agressões físicas, noutros são maus-tratos psicológicos, falta de afectividade", explicou a procuradora do DIAP de Lisboa, Fernanda Alves. De acordo com a sua experiência "têm acontecido alguns casos graves" que devem fazer pensar como é que "essas famílias foram sinalizadas, até porque alguns já tinham filhos biológicos e poderiam existir já indícios do que veio a acontecer." 

Fernanda Alves lembra ainda que, excluindo pequenas divergências entre adoptados e pais na adolescência - em que ambas as partes dizem o que não devem -, têm--se verificado casos graves de violência psicológica: "Há pais que por tudo e por nada dizem às crianças que elas não valem nada e que são iguais aos membros das famílias de onde vieram." 

Em dois dos seis inquéritos abertos nos últimos dois anos foi deduzida acusação - ainda que nenhum tenha acabado com condenação - e os outros quatro estão ainda em investigação. Fonte oficial da Procuradoria-Geral da República, explica que o tratamento de dados no DIAP do Porto não permite saber ao certo qual o número de inquéritos contra adoptantes mas o procurador Rui Amorim, que até há dois anos coordenou o Tribunal de Família e Menores do Porto também salienta que a falta de vínculos é um dos maiores problemas. 

prazos 
 "Para evitar a ocorrência de adopções mal sucedidas, talvez fosse de repensar o período mínimo de convivência entre adoptantes e adoptados para avaliação da conveniência da constituição do vínculo", explica o procurador, lembrando que "presentemente, o prazo mínimo que tem de ser observado é de seis meses (sendo reduzido para três meses no caso da adoptante de filho de cônjuge ou de companheiro), [o que pode] ser insuficiente para aquilatar da conveniência da constituição do vínculo." Na maioria dos casos, a sinalização é feita pelas escolas ou pelas comissões de protecção de Jovens e Crianças, mas há casos em que são denúncias como as de Maria que desencadeiam a investigação. 

Más Experiências por Estudar 
 Rui Amorim diz que os casos que chegam ao Tribunal de Família e Menores do Porto são importantes para que a Segurança Social possa seleccionar melhor os candidatos no futuro, mas segundo o i apurou nem sempre as conclusões do inquérito crime são usadas por entidades como a Santa Casa da Misericórdia ou Segurança Social para perceber o que pode correr melhor no futuro. Confrontada com esta situação, a procuradora Teresa Alves diz ter já tentado passar informações sobre os inquéritos que correm ou que já correram no DIAP de Lisboa para o Tribunal de Família e Menores, mas garante não ter tido qualquer feedback sobre o assunto. 


Ainda assim, a procuradora explica que, na prática, o Tribunal de Família e Menores também não tem influência sobre quem é seleccionado. E, mesmo que tenha dúvidas sobre se um pai ou uma mãe é a melhor opção para uma determinada criança, só se pronuncia quando o adoptado já está naquela família há seis meses: "Raros são os casos em que o tribunal diz que por algum motivo aquele não é o adoptante certo, porque já passou muito tempo e a criança já está ambientada." 

Defende por isso que "o tribunal deveria ter controlo sobre os candidatos escolhidos para cada criança". O processo ficaria mais lento e burocrático, mas essa demora poderia ser benéfica: "Seis meses pode ser muito pouco tempo para criar vínculos, aquelas crianças têm uma história e quando são adoptadas essas memórias não se apagam por magia." 

Sobre as situações que nem sequer chegam ao DIAP de Lisboa, a procuradora explica que ainda não há muita sensibilidade para a violência psicológica e que muitos casos - que até poderiam no limite enquadrar-se em crimes - podem não ter passado do Tribunal de Família e Menores, tramitando apenas como abandono afectivo. 

* Não é preciso ser adoptada para, muitas vezes, a criança ser tratada como bombo, basta ter pais selvagens, adoptivos ou biológicos.


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