18/10/2014

ANTÓNIO LOBO ANTUNES

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A minha manhã 
mais matinal

Ontem tive uma das minhas manhãs mais matinais: a minha mãe foi a enterrar. E, no cemitério, lembrei-me da morte de Van Gogh. Estava a pintar no campo, interrompeu o quadro e deu dois tiros no peito. Morreu dois dias depois, num hospital de freiras

O poeta francês Robert Desnos, de cuja obra gosto muito, morreu de tifo num campo de concentração nazi, quase no fim da guerra. As suas últimas palavras foram Esta é a minha manhã mais matinal e a frase extraordinária de Robert Desnos sempre me comoveu. Pois bem, ontem tive uma das minhas manhãs mais matinais: a minha mãe foi a enterrar. E, no cemitério, lembrei-me da morte de Van Gogh. Estava a pintar no campo, interrompeu o quadro e deu dois tiros no peito. Morreu dois dias depois, num hospital de freiras. Pendurado na parede do seu quarto aquele célebre quadro dos corvos sobre um campo de trigo. A freira que se ocupava dele perguntou-lhe o que representava o quadro. Van Gogh respondeu que representava a morte. A freira olhou melhor e disse Não parece uma morte triste e o pintor esclareceu-a E não é, Irmã: passa-se à clara luz do dia.

Assim a minha mãe: morreu à clara luz do dia e foi sepultada à clara luz do dia. Afastei-me um pouco porque sentia a terra das pás a cair no meu corpo. À clara luz do dia no meu corpo. Depois voltámos para casa dela e, pela primeira vez, ela não estava. O meu querido amigo Bento Domingues contou-me uma ocasião que disse a missa de corpo presente da mãe e que lhe fez o funeral. Passados tempos, ao voltar à aldeia, a sua primeira frase para o pai foi A mãe? Contou-me também que não vai aos cemitérios porque não está lá ninguém.

Eu: Então onde estão as pessoas que se foram embora? o Bento respondeu-me, com aquele extraordinário sorriso que é o dele: Andam por aí e portanto andamos todos por aí.

Daqui a não sei quanto tempo alguém que porventura goste de mim e lhe apeteça estar comigo, encontra-me por aí.

O Bento voltou à aldeia, interrogou o pai A mãe? e foi ter com ela numa manhã muito matinal. Porque todos os nossos momentos importantes se passam em manhãs matinais e porque começaremos a andar por aí na mais matinal de todas. E há períodos inteiros da nossa vida em que as manhãs matinais duram um dia, semanas, meses às vezes e a noite não existe nunca. Há gente que gosta da noite: eu só sou capaz de gostar de noites matinais. Tarde matinais, noites matinais, a chuva, eternamente matinal, do princípio do outono, que António Sardinha tão bem descreve Chuva da tarde, melodia mansa, Desejos vagos de chorar baixinho.

Voltei aos meus caprichos de criança: Só quero, amor, saber do teu carinho.

E é tão assim, de facto: tantos desejos vagos de chorar baixinho, às vezes sem saber porquê, não querendo saber porquê, sabendo porquê sem aceitar saber porquê. Tia Madalena, olhe, agora lembrei-me de si, foi sempre tão boa para mim. Gija, foste sempre tão boa para mim, coçavas-me que tempos as costas antes de me vestires o pijama e eu adorava. Lembranças que gelam dentro de mim um imenso bloco de saudade. A porta que me espera é tão negra! Tenho medo, não tenho medo, tenho medo mas há sempre a esperança que a Gija venha.

Chamava-se Alice, eu não era capaz de articular Alice, tratava-a por Gija, quando tinha quatro ou cinco anos, já homem portanto, casou com um taxista e deixou-me. Que desgosto de amor tão grande, que alegria quando, muitos anos depois, a encontrei: a ternura continuava intacta nos olhos dela. O prémio que mais prazer me deu receber foi o Prémio Rosalía de Castro, em Santiago de Compostela.

A Gija era galega, e diante daquela gente toda, tão importante, o orgulho que foi dedicar-lho em voz alta, a ela, uma camponesa pobre de uma aldeia ali perto. Gija, disse o teu nome diante do Presidente do Governo Autónomo, disse o teu nome diante do público todo e tinha a certeza que me ouvias. Ainda tenho. Tinha a certeza que ficaste orgulhosa de mim, o teu menino, Gija, no meio de senhores de muito respeito. Ainda tenho, como tenho a certeza que ninguém o entendeu tão bem como Rosalía, a minha poeta favorita, cuja leitura tanta alegria, consolo e emoção me traz. Que matinal essa manhã. Uma das mais matinais de todas. Robert Desnos entende. Tu entendes. Eu entendo. Agora, por exemplo, precisava tanto que me coçasses as costas antes de me deitares.

Deita-me devagarinho, como sempre fazias. E fica ali até eu já não ter medo. O Bento não garantiu que os mortos andam por aí? Chega-te só um bocadinho mais perto, que hoje é um dia difícil.

Um dia em que necessito tanto de ti. Mesmo já homem, ao ver-te com o teu marido, apetecia-me apertar-lhe o pescoço. De ciúmes, claro, e acho que ele percebia mas não se zangava: há momentos em que sou tão pequenino.

IN "VISÃO"
10/10/14


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