08/09/2014

JOSÉ PACHECO PEREIRA

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Como trazer ordem
 para o caos

As eleições de 2015, sejam quais forem os vencedores, mudarão muita coisa, porque abrirão a boca ao Tempo.

Com o hábito de medir o ano pelo ano escolar, mais do que pelo calendário, começa este mês um novo ano. Este “ano” vai durar desde o último trimestre de 2014 até às eleições de 2015, depois das quais tudo será diferente. Não disse que tudo será melhor, mas que tudo será diferente – saberemos então se 2008-2015 foi um hiato, ou se o período pós-2008, e em particular, 2011-2015, vai moldar a vida portuguesa para muitos e maus anos.

As eleições de 2015, sejam quais forem os vencedores, combinação de vencedores, vencidos e combinações de vencidos, ou não havendo vencedores nem vencidos, mudarão muita coisa, porque, mesmo que tudo continue aparentemente na mesma, abrirão a boca ao Tempo. E o tempo, como sabiam os antigos, “come as coisas”, tempus edax rerum, como escreve Ovídio nas Metamorfoses. Esta é aliás a única sabedoria que o próprio tempo melhora.
Este “ano” vai ser particularmente estranho, bizarro, confuso, caótico. Pode utilizar-se um só factor explicativo – é um ano pré-eleitoral, logo o eleitoralismo é o principal factor explicativo do que acontece, dissolvendo todos os outros. Ele não os faz desaparecer, mas dilui-os num ácido muito especial, a demanda pelos votos. Mas há outros factores que perturbam esta explicação única.

Há a situação da coligação, com dois partidos que precisam um do outro desesperadamente e que se detestam. Começa em Portas e Passos Coelho – e as personalidades contam muito em política – e termina na lógica dos aparelhos a precisar de contabilizar todos os lugares disponíveis nas listas de 2015, com a forte retracção previsível. Continua naquilo que Passos Coelho e Portas consideram deixar como “obra” na hipótese, mais que provável, de que não continuem a governar. Ambos estão a olhar para a sua “imagem”, ou seja, para o seu futuro imediato e a prazo. E também o que “vêem” é diferente e isso afecta a dose de eleitoralismo e a dose de “ajustamento”.

Pode acontecer que um deles, Passos Coelho, considere que deixar o “ajustamento” o mais longe possível é a melhor garantia do seu futuro, e não uma improvável vitória eleitoral de 2015. Será ele sempre o culpado, para todos, de qualquer derrapagem na austeridade, seja no défice, seja na dívida, seja nas políticas contra a função pública, ou contra os reformados e pensionistas, que não podem escapar à punição. Por isso, terá a tentação de ser o último moicano europeu da política Merkel, persistindo sem olhar a efeitos nas mesmas medidas de austeridade, aumento de impostos, ataque ao Estado, com os mesmos alvos de sempre, para criar uma Singapura europeia. Ele escolheu essa identidade e para outras não presta, outros são melhores.

Passos Coelho colocou-se inteiramente ao lado dos credores internacionais e da política que, via troika, formularam para Portugal. Tem sido recompensado por isso, tem recebido alguma complacência pelo esforço, com o fechar de olhos ao cumprimento imperfeito de todos os mais importantes objectivos do memorando, porque é reliable, como era Gaspar e é Maria Luís. Ele não quer perder essa glória de Cavaleiro do Ajustamento, até porque não tem outra e isso faz com que nele a pressão eleitoralista seja contraditória. Ele é pragmático e conhece a “casa”, tem que a aceitar, mas quando pensa na sua “obra” olha mais uma vez para os de sempre, para a perseguição aos “piegas”, o que provoca a fúria de Portas, que percebe que isso não tem futuro.

O CDS e o PSD recusarão tal politica pura e dura e vão obrigá-lo a ceder, como já aconteceu com os aumentos de impostos. E ele cederá às segundas, quartas e sextas e resistirá às terças, quintas e sábados. A grande tentação que os une a todos, PSD e CDS, porque é fácil, é empurrar para 2016 todos os problemas estruturais que são incapazes de resolver e todos os novos que criaram irresponsavelmente. Quem vier depois que se amanhe e eles acham que não são eles.

É este tipo de pulsões diversas que se manifestarão, darão origem a medidas contraditórias, sem nexo, de arranques e recuos, que caracterizarão este ano. Quem for para a análise com uma única grelha, seja a do eleitoralismo, seja a da persistência no “ajustamento” por razões ideológicas, vai-se enganar.

Por isso, este vai ser um ano excelente para o incidental e péssimo para qualquer consistência, bom para o comentário da semana onde não sobrarão “factos”, nem “notícias”, mas péssimo para qualquer esclarecimento público que privilegie a racionalidade. O caos é o caos e não há maneira ordenada de o descrever. E como a comunicação conta muito, será no modo como tratará o que está a acontecer, que muito se joga. Aliás, praticamente todos os agentes políticos voltar-se-ão ainda mais, se é que isso é possível, para tentar impor a sua “narrativa” aos media, o que no contexto do infotainment dominante é cada vez mais fácil.

A série americana da HBO Newsroom pode ajudar a perceber os dilemas de dar “voz pública” a este ano por cima da cacofonia. A série, notavelmente escrita por Aaron Sorkin, realizada e representada com a excelência dos actores americanos, pretende retratar uma redacção de um canal noticioso de televisão, no período pós-11 de Setembro, e da ascensão do Tea Party. Se abstrairmos do conteúdo meli-melo, que serve sempre de lubrificante a muitas séries (não a todas felizmente), a história assenta na luta de uma produtora, MacKenzie McHale, para introduzir um novo “conceito”, como agora se diz, de tratar as notícias, a que chama “News Night 2.0”. A série, cujo principal interesse é exactamente mostrar o background de um canal noticioso, não pretende ser realista: não há jornalistas como aqueles a não ser como excepção, e não há televisões como aquela a não ser em Sirius e mesmo assim não estou certo, mas os problemas levantados pelo News Night 2.0 são relevantes para se discutir como é que se pode tratar este ano confuso.

Nesse “conceito” há uma recusa radical da informação como entretenimento, mesmo com efeitos negativos nas audiências. A recusa de tratar o julgamento sensação de Casey Anthony, uma criança suspeita de ser morta pela mãe, é um exemplo dessa atitude, que levou o canal a perder metade da audiência e a recuar. E a assunção de que a procura da verdade é uma função essencial do jornalismo, com uma edição rigorosa das notícias evitando o sensacionalismo. A personagem principal, o pivô, não se coíbe de exprimir as suas opiniões, é um republicano que combate a submissão do seu partido a um ideário fundamentalista (onde é que eu já vi isto?) trazido pelo Tea Party à política americana, a quem chama os “taliban americanos”.

O resultado é um confronto com o canal conservador Fox News, entrevistas duras e sem complacências, muitas vezes roçando o bullying (e o sentimento de culpa posterior pelos excessos), uma agressiva verificação dos factos usando fragmentos reais de entrevistas televisivas e declarações e confrontando-as com as estatísticas. Um exemplo típico é uma pergunta proposta a Michelle Bachmann, congressista republicana ligada ao Tea Party, que dizia que tinha sido Deus a sugerir-lhe que concorresse para Presidente. O jornalista perguntaria: “Como é que soa a voz de Deus”? Perguntaria, porque os assessores de imprensa de Bachmann recusaram a entrevista ao canal.

Imagino como seria bom que, mesmo que de forma imperfeita, neste ano de confusão, houvesse um qualquer “News Night 2.0”. Por exemplo, só para os últimos dias, que alguém perguntasse a Passos Coelho, na vinda da sua reunião da NATO, se vai haver um reforço do orçamento da defesa para ser credível a retórica sobre a Ucrânia? Ou que alguém fizesse uma peça num telejornal mostrando como os critérios estatísticos do desemprego são mais fiáveis quando o desemprego sobe do que quando desce. Ou que investigasse o que são os estágios de formação que retiram milhares de nomes das listas do desemprego e que instruções dá o Governo ao Instituto do Emprego e Formação Profissional, uma das áreas mais controladas partidariamente no Executivo. E porquê? Ou que perguntasse a Passos Coelho depois do discurso do Pontal, em que disse “eu não tenho nenhum problema com os aposentados (…) mas o país tem!”, qual é o problema que o “país” tem com os aposentados? E por aí adiante. Mas isso não acontecerá: haverá caos, setas para cima e para baixo, cinismo, aceitação da linguagem da “inevitabilidade”, e muito infotainment.
Quem manda, agradece. 

IN "PÚBLICO"
06/09/14


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