28/08/2014

CARLA HILÁRIO QUEVEDO

.








Banhos gelados

As doações podem passar a não depender de molhar o próximo. Basta deslocarmo-nos a uma praia para experimentarmos a sensação de entrar numa arca frigorífica a céu aberto
 .
Tenho sentimentos contraditórios sobre o desafio deste Verão, que consiste em doar dinheiro a associações que se dedicam ao combate à esclerose lateral amiotrófica, uma doença neurodegenerativa e incapacitante, ao mesmo tempo que se experimenta levar com um balde de água fria pela cabeça abaixo. Se chama a atenção para o problema? Chama, mas não me interessa assistir a vídeos sucessivos com "celebridades" paralisadas pelo frio inesperado da água. A repetição é cansativa. Vimos o Jimmy Falon a despejar um balde de água pela cabeça e achámos agradável, olha que boa ideia chamar assim a atenção para uma doença avassaladora e pouco falada. Depois fomos convidados a ver o Cristiano Ronaldo de cuecas, com pouco risco, a ser "surpreendido" por um alguidar de água fria. Pronto, está bem. Até que por fim sorrimos de cansaço com os gritinhos da Jennifer Lopez. Da óptica do espectador, penso que basta. 

As doações podem passar a não depender de molhar o próximo. Em Portugal, temos mesmo a vantagem de o nosso contacto com a temperatura fria da água ser diário ou quase. Basta deslocar-nos a uma praia (dizem que este ano até as temperaturas das águas algarvias andam baixas) para experimentarmos a sensação de estarmos a entrar numa arca frigorífica a céu aberto. "Sabes que isto faz muito bem às pernas?", dizem os que consolam pela ofensa. O bem que faz a água gelada à circulação, ao tecido adiposo formado durante um Inverno de sedentarismo acompanhado dos mais variados sortidos de bolachas caseiras, à pele lisíssima e fria... Li em tempos e concordei: quem vive ao ar livre tem a pele mais quente e é por isso mais mordido por melgas e mosquitos do que quem vive por norma enfiado em sítios. A pele fria não é atractiva. Isto pode significar que a probabilidade de uma criatura com hábitos sedentários ser mordida numa praia portuguesa é reduzida. A água é gelada mas ao menos não se fica com borbulhas. 

Banhos gelados são aqueles que centenas de pessoas tomam em praias como São Martinho do Porto, Figueira da Foz ou Nazaré. Isso, sim, parece-me um desafio. Em vez de um balde de água fria pela cabeça abaixo, basta um mergulho na praia do Norte na Nazaré, aquela que por estes dias de Verão ilude os distraídos com um mar disfarçado de "flat", só porque não se manifesta nas ondas de 30 metros surfadas por um homem que os nazarenos tratam por "Má Cara". Mas uma olhadela de cima para a praia nos dias de mar aparentemente sossegado é suficiente para nos assustarmos com a imensidão selvagem do sítio. Ninguém vai para ali, a não ser turistas inocentes e pessoas desesperadas por escapar à confusão da praia do Sul. A paisagem é agreste, os acessos são difíceis, e o mar, lá está, é gelado como nenhuma água em nenhum balde do mundo. 

Molhar o pé na praia do Norte podia ser uma variante interessante ao balde de água fria, mas não, não. Até isso pode ser perigoso. E onde já se ouviu falar de campanhas de doações que põem em perigo os doadores? Mas uma coisa é certa. Os banhos gelados estão longe de ser uma novidade em Portugal.

IN "i"
23/08714


.

Sem comentários:

Enviar um comentário