O desejo
"Aqueles que reprimem o desejo assim o fazem porque o seu desejo é fraco o suficiente para ser reprimido" (William Blake, O Casamento do Céu e do Inferno)
Nos últimos dias a (baixa) natalidade em Portugal
foi praticamente reduzida a uma questão meramente económica. Os casais
não têm (mais) filhos pois estamos em crise, o desemprego é muito
elevado, o emprego é precário, os jovens (e menos jovens) não têm
condições de planear a sua vida...
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Segundo o relatório que o Primeiro-ministro Passos
Coelho encomendou a uma comissão 'independente' (qual a necessidade de
se adjetivar a comissão?!) - "
Por um Portugal amigo das crianças, das famílias e da natalidade (2015-2035): remover os obstáculos à natalidade desejada
" -, apesar de todas as más notícias e fatalidades que têm atingido os portugueses, há uma 'boa' nova: "a fecundidade desejada é de 2,31 filhos" (a efetiva é de 1,21), sendo que os homens, vá lá se saber porquê, têm um desejo maior do que as mulheres (2,32 contra 2,29).
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Desta feita, concluem os autores, é necessário "remover os atuais obstáculos à natalidade com que as famílias se deparam".
Para tal, propõem um vasto conjunto de medidas fiscais, de relação
trabalho-família, educação, saúde, e autarquias que possam contribuir
para um efetivo incentivo à natalidade. Não há, no entanto, neste
relatório (por vontade explícita dos seus autores) um calendário de
implementação objetivo das medidas propostas, assim como está ausente
uma aferição do respectivo impacto financeiro ("não era a nossa tarefa", argumentam os autores, "embora tenhamos ... apreciado ... a relação custo/benefício") e/ou estabelecimento de prioridades, sendo sublinhado relativamente a este último ponto que tal "fica ao critério da decisão política em cada momento". Ou seja, de acordo com as palavras mais recentes do Primeiro-ministro, no dia de S. Nunca (à tarde)...
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De facto, embora reconhecendo a 'grandeza' do problema
e o "contributo generoso e competente" das 11 personalidades que
contribuíram para o relatório, Passos Coelho foi logo avisando que "
o dinheiro é escasso
"... Previsível, na minha opinião, mas irracional e incoerente: para quê
gastar os nossos parcos recursos em estudos/diagnósticos se não se
tenciona fazer nada?
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Porém, na minha ótica (que admito, para alguns,
demasiado simplista), a muito baixa natalidade em Portugal que não é de
agora (ocorre desde os anos 80 do século passado) e está fortemente
ancorada numa profunda alteração de valores e expectativas dos casais, em geral, e das mulheres em particular.
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Graças a métodos contraceptivos cada vez mais
evoluídos é possível hoje em dia 'racionalizar' a conceção de filhos,
designadamente quanto ao timing e a quantidade. A opção por ter
filhos é cada vez mais tardia, não necessariamente por falta de recursos
económicos ou outros, mas porque as mulheres em idade fértil optam,
legitimamente devo acrescentar, por estudar, viajar pelo mundo, namorar,
eventualmente casar ou firmar uniões de facto, gozando a vida em casal
por dois ou mais anos e só depois então, quando a vida profissional está
estabilizada, possuem carro e casa adequada, pensam em ter filhos. Para
muitos casais, esta altura é já tarde demais.
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Adicionalmente, muitos casais que optam por ter filhos preferem a 'qualidade' à 'quantidade' - o
mais recente destaque
do Instituto Nacional de Estatística (INE), publicado em setembro de
2013, para além de registar um aumento dos casais sem filhos e das
famílias monoparentais, revela que mais de metade dos casais portugueses
tem apenas um filho, tendência que se acentuou nas últimas décadas. Ao
contrário dos seus/nossos pais (e avós) que, regra geral, tiveram que
experienciar inúmeros sacrifícios, contando cada 'tostão', para
proporcionar aos seus descendentes alimentação, vestuário e, sobretudo,
uma educação razoável, estes mesmos descendentes preferem ter um número
de filhos substancialmente menor, tendencialmente um, mas dar a este
filho único 'tudo do bom e do melhor': boa educação, fazer viagens para
que a criança conheça o mundo, telemóveis, iPads, roupa de marca... pois "se os filhos dos outros têm, o 'nosso' não pode ficar atrás sob o risco de ficar traumatizado, excluído"...
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Por muito que seja cómodo colocar integralmente a culpa
na crise, na precariedade laboral, etc., se recuarmos 30/40 anos, ao
tempo dos nossos pais e avós, quando, em média, o nível de vida
era substancialmente mais reduzido do que o que temos agora, parece-me
importante reconhecer que para muitos portugueses e portuguesas as
crianças já não representam um papel fundamental nas suas vidas: ter
filhos é menos importante do que ter uma carreira, hobbies e amigos.
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Neste contexto, mesmo que houvesse 'folga' orçamental,
as políticas de incentivo à natalidade e fecundidade estariam
condenadas ao fracasso.
"Porque eu desejo impossivelmente o possível,
Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser,
Ou até se não puder ser...
E o resultado?
(...)
Para mim só um grande, um profundo,
E, ah com que felicidade infecundo, cansaço,
Um supremíssimo cansaço,
Íssimno, íssimo, íssimo,
Cansaço..."
IN "EXPRESSO"
(Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, in "Poemas")
18/07/14
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Nas sociedades menos desenvolvidas a natalidade é muito alta enquanto que nas mais desenvolvidas se passa o contrário, é baixa, mas a população dos países mais desenvolvidos é mantida (ou aumentada) por vagas de imigrantes que chegam constantemente, vindas dos países menos desenvolvidos que não lhes podem oferecer condições de vida dignas para um ser humano. Há emigrantes que fogem de guerras nos países de origem.
ResponderEliminarPortugal é considerado um país desenvolvido e já recebeu vagas de imigrantes há poucos anos atrás que ajudaram a subir a sua natalidade, porém, com a degradação das condições de vida no país, voltou a ser um país de emigrantes em vez de imigrantes, por isso, ao mesmo tempo que a sua população ativa e em idade de procriar emigra a natalidade reduz-se inevitavelmente.
No caso de Portugal há ainda outro drama: como os jovens não conseguem arranjar um emprego no final dos longos anos de escola, apesar de em muitos casos terem atingido uma formação elevada, não podem pensar em tornar-se independentes dos progenitores, criar uma nova família, arranjar uma casa e muito menos ter filhos, por isso fazem como qualquer animal em cativeiro: sem condições não se reproduzem. Alguns emigram então em busca de um país onde possam realizar os seus sonhos e vão procriar algures fora deste país, porque em sociedades saudáveis as crianças aparecem automaticamente sem necessidades de complicados esquemas de apoio à natalidade. Quanto aos outros jovens que não emigram porque ou não têm formação que lhes permita singrar lá fora ou porque não o desejam, alguns, poucos, acabam por conseguir empregos precários e mal remunerados para um país em que o custo de vida é tão alto, continuando em casa dos pais sem conseguir a sua independência financeira. Ainda assim, alguns desses conseguem criar a sua própria família quando a idade já anda pelos 30 anos, embora não tenham uma solidez económica e financeira que lhes permita pensar em ter uma grande prole porque os rendimentos continuam baixos mas as despesas aumentam sempre, por isso ficam-se por um filho ou dois no máximo. Eis porque a natalidade está tão baixa em Portugal. Não se pode esperar que uma sociedade doente como a nossa, em que as pessoas vêm reduzida a sua qualidade de vida (e a dos seus descendentes) tenha aumentos de natalidade. Foi imoral acabar-se com os abonos de família para a generalidade dos pais portugueses.
Não se pode querer aumentar a natalidade de forma artificial sem melhorar o nível de vida dos portugueses; a não ser que se criem duas estirpes de cidadãos: uma de “obreiros”, mal pagos mas que pagam altos impostos para a outra estirpe, a dos “procriadores”, que recebem altos subsídios mas pagos apenas a quem tem muitos filhos. Uma sociedade assim faz-me lembrar a das abelhas ou das formigas. Já estamos quase lá!
Zé da Burra o Alentejano
zedaburra@sapo.pt
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