01/06/2014

ANA BACALHAU

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«Por uma lágrima tua»

Lágrimas de tristeza. Lágrimas de alegria. Lágrimas de dor. Lágrimas de raiva. Lágrimas de crocodilo. Cada lágrima com o seu complemento determinativo.

A gramática a mostrar que sabe das coisas antes da ciência. Eu explico: a fotógrafa Rose-Lynn Fisher publicou um livro com imagens que mostravam lágrimas observadas ao microscópio, ampliadas centenas ou milhares de vezes. Durante um período atribulado da sua vida, conta, perguntou-se a si mesma como se­riam as suas lágrimas ampliadas. Não se fez de rogada e procedeu à experiência. Apanhou as suas lágrimas, esperou que secassem e examinou-as ao microscópio. Os resultados surpreenderam-na.

Os padrões formados pelas lágrimas eram diferentes, con­soante elas fossem de dor, de alegria, de tristeza, de raiva ou por descascar cebola. A ciência explica que assim é porque o nosso corpo liberta diferentes substâncias consoante aquilo que sente e que, por isso, cada lágrima apresenta o seu padrão distinto de acordo com a emoção sentida. A poesia há muito que o sabe. As ar­tes têm destas coisas. Intuem algo que vem a confirmar-se ser ver­dade objectiva e firmada cientificamente anos mais tarde.

De qualquer das formas, não deixa de ser fascinante pen­sar que cada lágrima que nos corre é diferente. As razões do seu nas­cimento dão-lhe forma e estrutura. É como se um pedaço da nossa alma se consubstanciasse. Mas claro, como qualquer objecto poé­tico, aquilo que está à vista não deixa de estar escondido. Apenas os mais curiosos, os mais voluntariosos, os mais engenhosos, se lem­bram de observar mais de perto as «microscopices» da alma.

Dir-me-ão que as emoções, bem como as lágrimas, não são per­tença da alma, mas do corpo. Aqui por alma quer dizer-se tudo isso so­mado e mais alguns grãozinhos que eventualmente apareçam na equação. No sentido prático, daria algum jeito haver forma de se con­seguir esmiuçar as lágrimas com que nos brindam, para perceber se são de crocodilo. Parecendo que não, evitar-se-iam muitos equívocos.

Aí está uma ideia que venderia milhares de itens. Construir uma geringonça que pudesse averiguar no momento se as lágrimas são «verdadeiras» ou forçadas. Uma espécie de polígrafo lacrimal.

Uma curiosidade: como serão as lágrimas que os actores choram, quando fazem uma cena? Se a personagem chora de tris­teza, serão as lágrimas choradas pelo actor de tristeza? Ou as lá­grimas não confundem a realidade com a ficção?

E as lágrimas derramadas por descascar cebola? Serão elas vazias de significado? Na verdade, foram provocadas por necessi­dade. Não se quer chorar, mas é-se obrigado devido à natureza da­quilo que nos está nas mãos. Um castigo que a cebola nos impõe por a irmos cortar aos pedaços. Será que a tristeza da cebola ao sentir que irá desaparecer passa para as nossas lágrimas?

Poderá ser que a tristeza não se mostre igual de pessoa para pessoa. Se calhar, os padrões são pessoais e intransmissíveis, como uma impressão digital. E com diferentes graus, como as cores. Por exemplo, o roxo, que se divide em púrpura, lilás ou cor-de-vinho, tal como a dor, que se divide em fraca, média, forte ou muito forte.

E quando os sentimentos são mistos, como serão as nossas lágrimas? Talvez a complexidade do que se sente, que não permite distinguir a tristeza da alegria, tenha efeito nos padrões lacrimais. Que desenhos não poderão surgir desses momentos agridoces! Porventura, obras de arte. E se todos (mesmo os que, como eu, não têm qualquer talento para desenhar), se puderem re­velar um verdadeiro Picasso através das suas lágrimas? Será, com certeza, um sonho bonito. Que não anda longe da verdade.

São as nossas emoções que moldam e criam a arte, tal co­mo moldam e criam as lágrimas. E, nos seus traços, nos revelam.

IN "NOTÍCIAS MAGAZINE"
25/05/14


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