Aurélio Pereira
ou um projeto antropológico
Sinto como um
privilégio conviver e merecer a amizade de Aurélio Pereira, o grande
mentor e criador da formação dos jovens futebolistas do Sporting Clube
de Portugal (SCP). A atividade que escolheu e a que com tamanha
exemplaridade se devotou – segundo a opinião dos entendidos, não tem
par, em competência e honestidade, no mundo todo.
Do seu
trabalho “nasceram” jogadores como Cristiano Ronaldo, como Luís Figo,
como Rui Patrício, como Ricardo Quaresma, como Simão Sabrosa, como André
Martins, como João Moutinho, como Nani, como Semedo, como Mané, como
Podence e tantos, tantíssimos mais. Para dar voz à admiração que nutro
pelo meu Amigo Aurélio, não tenho receio em acrescentar: é um autêntico
milagre o que ele tem realizado, entre os jovens futebolistas
“leoninos”. Recebi, há uma semana atrás, saía eu de uma gripe
traumatizadora, um telefonema do Jaime Cancella de Abreu: “O Aurélio
Pereira propõe-nos um almoço, na quinta-feira da próxima semana, em
Alcochete. O que acha?”. O que havia de achar, que me considero
discípulo da eficácia, da lucidez, da firmeza, da seriedade do Aurélio
Pereira? Respondi-lhe, imediatamente: “Estou à vossa disposição e
agradeço-vos que permitam a minha presença”. Farto estava eu de saber
que muito aprenderia com a irrequietude do Cancella de Abreu, o meu
editor preferido, e a sabedoria do atual coordenador do recrutamento da
formação sportinguista. Houvesse mais “Aurélios”, no futebol português, e
seriam também mais os “Ronaldos” e os “Figos”.
Trilhando
caminhos em que, antes dele, raros se afoitavam, levava comigo um
arsenal de perguntas para, por meio delas, visionar o paradigma
norteador do trabalho do Aurélio Pereira. Mas, antes que eu pudesse
questioná-lo, antes de conversa mais folgada, ele adiantou-se: “Quero
que você saiba, Manuel Sérgio, que só há dois anos que estudo as suas
ideias, principalmente depois da leitura dos seus livros Filosofia do
Futebol e As Lições do Prof. Manuel Sérgio”. E continuou: “E quero
dizer-lhe também que as suas ideias, que não conhecia até 2012, nada têm
a ver com o trabalho que, até àquela data, fiz no Sporting. Mas, hoje,
que julgo conhecê-las, nas suas linhas gerais, sinto-me mais seguro
naquilo que faço e vou até ao ponto de pensar que o meu trabalho tem
fundamentação científica”.
Como há trinta anos me sucedera com
José Maria Pedroto, outro desbravador da floresta cerrada da vasta
problemática do futebol, uma grande emoção cresceu em mim, irrefreável, e
a custo fiz uma súmula do que pretendia dizer-lhe: “Querido Amigo,
hoje, dia 23 de Janeiro de 2014, é um dos dias mais felizes da minha
vida. E porquê? Porque o Aurélio Pereira me diz que, também para ele,
ajudar à formação de jogadores de futebol é, em primeiro lugar, medir as
suas potencialidades físicas e técnicas e depois ajudar à formação de
valores inegociáveis, nos jovens que chegam ao Sporting, entre os 6 e os
18 anos. No campeão do futuro, ou há também valores humanos, ou não há
desporto. De facto, o futebol nasce de homens, homens só e nada mais do
que homens”. Será esta a grande revolução que se processou, no futebol
de formação do Sporting?
Atravessa hoje, o Sporting um momento
de arrebatada e arrebatadora viragem, sob a liderança do Dr. Bruno de
Carvalho. Aurélio Pereira, lucidamente recetivo ao trabalho do seu
presidente, não corre atrás das fáceis e berrantes verdades dos
comentadores, com ideias confortavelmente definitivas. Pelo contrário,
numa atmosfera desanuviada de constrangimentos, pois que o Sporting o
respeita e o estima, o coordenador do recrutamento dos jovens leoninos
não desconhece o “primado teórico do erro” e critica e critica-se, já
que todo o processo científico é um processo inacabado de verdades
provisórias.
Nesta perspetiva, uma evidência indiscutível ou é
um engano ou uma patetice. Não foram, por isso, palavras lançadas ao
vento as que escutei ao Aurélio Pereira, naquele almoço inesquecível: “O
futebol estuda-se, em Portugal, divorciado da história das ideias, da
vida social, económica e política. Por isso, ao contrário do que o
Manuel Sérgio ensina, há muitos anos, para a grande maioria dos nossos
agentes do futebol o futebol não passa de futebol. Ora, para nós, na
formação do Sporting, o nosso trabalho tem de mergulhar numa
problemática muito mais vasta do que a problemática típica do futebol.
São as saudades da família; é o rendimento escolar; é uma formação para
os valores, que vai muito para além da educação formal; é o respeito
pelas tradições do clube que os escolheu – enfim, o futebol é mais do
que futebol”. E, sublinhando bem o que dizia: “Nós, na formação do
Sporting, temos a certeza que, se não formarmos homens, o jogador não
nos interessa”.
Quando o jovem chega ao Sporting, se bem entendi o
meu querido Amigo, Aurélio Pereira, é o seu jeito para o futebol, são
os fatores hereditários, que imediatamente se procuram. “Mas é, através
de um projeto antropológico, que desenvolvemos as qualidades do
futebolista”. E, simpático, olhos-nos-olhos, confidenciou-me: “Manuel
Sérgio, sem eu mesmo o saber, era a sua teoria que eu seguia”. Rendido,
de lágrimas nos olhos, observei: “E é a sua prática, porque a prática é o
critério da verdade, que vem dizer-me ser bem possível que eu esteja,
teoricamente, no caminho certo. Querido Amigo, considere-me seu
discípulo”.
A timidez e a modéstia de Aurélio Pereira, o seu
sportinguismo convicto, não lhe ofuscavam a consciência da importância
da suas (nossas) ideias. Por isso, as suas palavras não pareciam, nem
embaraçadas, nem inseguras. O projeto antropológico do seu trabalho
passara a ter paradigma científico. Entardecia. Lá fora. Amanhecia.
Dentro de nós (o Aurélio Pereira, o Cancella de Abreu e eu próprio).
Antes de entrar no carro, que me conduziria a Lisboa, o Aurélio Pereira
ainda me deixou um aviso: “Gostaria de ler a sua tese de doutoramento”.
Naquele almoço, senti a falta do José Maria Pedroto – um homem que viveu
antes do seu tempo!
IN "A BOLA"
28/01/14
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