27/01/2014

MANUEL LOFF

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Reabrir a guerra moral

Pensa o PSD, depois de bloquear a co-adopção, apontar canhões contra a liberdade de abortar e o casamento gay?

É legítimo discutir problemas de organização moral da família num momento de profundo mal-estar social, em que um quarto da população vive num nível de pobreza tal que o impede de gerir livremente as suas vidas, em que os portugueses são forçados à desesperança e ao desenraizamento como forma de construção do futuro? Claro que é.

Da aprovação da lei da coadoção depende a felicidade de muitas vidas – e nem que fosse de uma só! O que me pergunto é porque decidiu o PSD apostar numa cruzada referendária contra a coadoção de filhos de casamentos de pessoas do mesmo sexo ao mesmo tempo que foge da discussão dos efeitos sociais (que, aliás, nega) da política austeritária que produziu um milhão de desempregados.
Faz lembrar as eleições americanas de 2004, nas quais Bush filho e a Direita Cristã decidiram discutir da pior forma o casamento gay para evitar discutir a crise económica e, sobretudo, o desastre do Iraque e as mentiras de Bush para justificar a guerra. Havia que mudar o fulcro da discussão e, dessa forma, puxar a maioria dos eleitores para um resvaladiço terreno moral onde os debates sobre os direitos dos cidadãos se fazem no campo de uma pseudorreligiosidade patriarcal e homofóbica verdadeiramente indignante.

A minha explicação para o que está a suceder em Portugal é semelhante. Aprovado o casamento gay, é importante discutir a ampliação do reconhecimento de iguais direitos de formalização legal do amor a todos os cidadãos, o que significa reconhecer aos casais homossexuais exatamente o mesmo direito de que dispõem os casais heterossexuais de solicitar a um tribunal a coadoção dos filhos dos seus cônjuges. O que querem aqueles que aprovaram (o PSD) e apoiam (a hierarquia da Igreja via secretário da Conferência Episcopal Portuguesa, CEP) o referendo é animar à guerra contra a muito lenta emancipação das mulheres e de minorias sexuais que permitiu no Ocidente capitalista, desde os anos 1970, o reconhecimento do direito à interrupção voluntária da gravidez e ao casamento e à adoção por pessoas do mesmo sexo. Depois de anos de (ainda hoje superficial) suavização da discriminação dos homossexuais, quer-se reconstituir o que se julga ser uma maioria social homofóbica. Parar a mudança. Voltar atrás.

Não discutirei aqui a má-fé da proposta de referendo, ou a forma como ela divide a própria direita política portuguesa. Limito-me a sublinhar que a Igreja Católica foi a única que discutiu a legitimidade do Parlamento para aprovar a coadoção. Gostaria de duvidar de que a CEP se sinta representada por semelhante personagem como o presidente da JSD, mas é o que parece. Em novembro passado, a CEP definiu bem o que entende estar aqui em causa: “As alterações legislativas introduzidas no nosso sistema jurídico” (que os bispos acham produto de um disparate que inventaram e a que chamam “ideologia do género”) “não são irreversíveis. E os cidadãos e legisladores que partilhem uma visão mais consentânea com o ser e a dignidade da pessoa e da família são chamados a fazer o que está ao seu alcance para as revogar” (PÚBLICO, 14.11.2013). É curioso: entre os dois grandes partidos da direita portuguesa, aquele que cedeu a este descarado exercício de lóbi clerical foi o que nunca se reivindicou do catolicismo político, dirigido por homens com uma vida pessoal tão pouco consentânea com a ortodoxia do Vaticano quanto Sá Carneiro ou Passos Coelho. Pensa o PSD, depois de bloquear a coadoção, apontar canhões contra a liberdade de abortar e o casamento gay?

É tudo menos coincidência que os bispos portugueses digam que o que está em causa é a “desconstrução da matriz heterossexual da sociedade” logo que o Papa abriu uma estreitíssima janela de reconhecimento da dignidade dos homossexuais, e daqueles que são crentes em especial, ao perguntar aos crentes católicos que atitude “pastoral” a tomar perante “as pessoas que escolheram viver em casais do mesmo sexo” e, dentro destes, aquelas que “adotaram crianças”. Quando o ex-reitor da Universidade Católica Braga da Cruz diz que “estamos perante uma questão que altera a ordem civilizacional em que temos vivido ao longo de milénios”, o que ele está a fazer é, além de condicionar a resposta dos católicos, calar o próprio Papa! Pior ainda é que se roce a linguagem dos anos 1930 e se fale de “algumas vanguardas” que pretendem “impor modelos à sociedade portuguesa (…), numa perspetiva muito egoísta” (Braga da Cruz, RR, 19.1.2014), como Salazar que, em 1936, depois de impor o dogmático “não discutimos a Família!”, denunciava os que queriam “erguer em teoria, em ciência e em programa de Estado o que havia de supor-se passageiro desvairamento”.

A ONU denuncia por todo o mundo (Europa incluída) o aumento dos crimes de ódio contra os homossexuais e os transexuais; 80 países continuam a criminalizar a homossexualidade, três deles com a pena de morte; dentro da UE, a Hungria e países bálticos retomam legislação discriminatória; a comissária da ONU para os direitos humanos, Navi Pillay, recorda que "a homofobia e a transfobia não são diferentes do sexismo, da misoginia, do racismo ou da xenofobia". E a Igreja e os seus porta-vozes veem invasão de vanguardas homossexuais num país onde nem sequer se tem o direito a coadotar os filhos de quem se ama e com quem se vive. Que hipocrisia!

Historiador

IN "PÚBLICO"
23/01/14

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