02/01/2014

HELENA GARRIDO

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O vício do crédito

Quem gostaria de ter um negócio? "Eu". Muito bem. Vamos começar por identificar o negócio e fazer uma lista do que é necessário ter. Lista feita, a pergunta que agora se impõe é: como vamos pagar?

Quem gostaria de ter um negócio? "Eu". Muito bem. Vamos começar por identificar o negócio e fazer uma lista do que é necessário ter. Lista feita, a pergunta que agora se impõe é: como vamos pagar?

Experimente fazer este pequeno exercício com amigos que nunca tivessem tido um negócio. Ou com os seus alunos, se for professor em graus que não sejam gestão ou economia.

Há dois ou três anos a resposta era invariavelmente e sem hesitação: "Peço um empréstimo ao banco". Mas de todo o dinheiro de que vai precisar? Claro.

Parecia não se perceber que o dinheiro custaria dinheiro, que iria comer a margem do negócio, para não dizer que o que se ganhava na operação nem chegaria para satisfazer os juros. Uma visão da realidade que, exagerando e simplificando, se aproximava daquela visão das crianças bem bebés que pensam que a caixa Multibanco é simplesmente a parede para tirar dinheiro.

Actualmente a resposta já não é tão candidamente focada no banco, já se pensa que será preciso ter algum dinheiro próprio para se lançar um negócio ou fala-se de um abstracto investidor. A razão desta mudança está mais relacionada com os efeitos violentos da crise da dívida, e de tanto se falar dela, do que propriamente numa alteração da oferta de crédito - quer seja por incentivo do próprio Governo como da iniciativa do próprio banco.

Os perfis de oferta de microcrédito que o Negócios revela na sua edição do Investidor Privado desta segunda-feira, dia 30 de Dezembro, é um exemplo da imutabilidade da filosofia de negócio da banca. Tal como as lamentações que se vão ouvindo de alguns ditos empresários sobre a falta de crédito. Quer do lado da procura como do lado da oferta de financiamento, a preferência por mais endividamento e menos capital próprio mantém-se. Uma alteração na inclinação das curvas de preferência que se foi reforçando a partir dos anos 80.

Os gestores financeiros sabem que não há "o valor óptimo de endividamento". A relação entre dívida e capital próprio depende, por exemplo, do negócio - se se está num sector em crescimento a empresa pode ter mais dívida - como depende da margem - quanto maior for, menos riscos corre a companhia de ficar incapaz de fazer o seu serviço da dívida na fase negativa do ciclo. Mas foram muito poucas as empresas portuguesas - como os próprios bancos - que aplicaram estes princípios básicos, na sua combinação entre dívida e capital. E parte da violenta restrição financeira que nos lançou para a crise está relacionada com o elevado endividamento das empresas portuguesas - a banca internacional não quer emprestar a quem tem dívidas, que são frequentemente seis a sete vezes a margem.

O crédito pode acelerar o crescimento de uma empresa como de um país. Mas pode, também, como o demonstra a crise que temos vivido, condenar a empresa a fazer uma violenta dieta apenas para pagar dívidas. E se os países não morrem assim, os negócios, sujeitos a dietas violentas, em geral não se aguentam.

O microcrédito pode ser uma excelente ideia. Mas, como todas as boas ideias, rapidamente se transforma em maus resultados quando usada sem respeitar os princípios mais básicos de uma boa gestão. O sonho do Nobel da Paz, Mohammad Yunus, que inventou o conceito do microcrédito e do banco para os pobres, também se transformou num pesadelo.


IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
30/12/13

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