02/12/2013

JORGE FIEL

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Uma dúvida hortográfica

Foi há uma dúzia de anos na feira hippie de Ipanema, no Rio de Janeiro. Acabado o demorado namoro de um quadro naïf (que ainda não me arrependi de ter comprado) e fechado o processo de negociação do preço, o pintor/vendedor não conseguiu disfarçar mais a sua curiosidade e perguntou-me: "Cê é mesmo quê? Árgentino?"

Não duvido da importância da língua portuguesa e do impacto económico de ser falada por 250 milhões de pessoas (3,7% da população mundial) que em oito países de quatro continentes produzem 4% da riqueza mundial. 

Não ouso sequer duvidar das conclusões do estudo do ISCTE, que garantem ser a língua portuguesa uma das mais influentes do Mundo (é a 7.ª mais falada), estar em expansão e ter um valor calculado em 30,8 mil milhões de euros!

A dúvida só surge quando reflito numa data de episódios aparentados com o da feira hippie de Ipanema e tendo a pensar que sendo o português a língua que angolanos, brasileiros, moçambicanos, timorenses, portugueses, guinéus, cabo--verdianos e são-tomenses falamos oficialmente, na verdade prática do dia a dia a língua não é a mesma.

Quando cheguei à Madeira, onde vivi o atribulado ano de 1981, os razoáveis conhecimentos da língua portuguesa, que me tinham permitido tornar-me jornalista e cursar História, revelaram-se insuficientes para desempenhar as funções que o exército me atribuíra.

Precisei de tradutor, quando um soldado me disse que faltara à primeira formatura da manhã porque "perdera o horário" (1). E voltei a necessitar de intérprete quando, durante uma semana de campo, um outro rapaz me pediu autorização para "ir em cima dos pés" (2).

O vermezinho da dúvida instalou-se em definitivo ao ler e ouvir o otimismo de quem acha que o novo Acordo Ortográfico (novo é uma maneira de dizer, pois foi aprovado em 1990, quando ainda ninguém sonhava com o Google, o euro ou o Facebook) é o remédio santo que miraculosamente facilitará a comunicação entre 250 milhões de pessoas que falam uma língua que parece a mesma, mas na verdade não é, se não as novelas e filmes portugueses não tinham de ser legendados para passar no Brasil.

Até acho graça ao Acordo Ortográfico, mas não acredito na sua eficácia. Apesar de - desde que em 1419 Gonçalves Zarco descobriu a Madeira - ter estado sempre em vigor o mesmo Acordo Ortográfico com aquele arquipélago, tive de aprender uma data de coisas para me desembrulhar no ano em que fui cubano no couto do Alberto João.

É por isso que não ligo muito à hortografia (sei que não é assim que se escreve, mas, c'os diabos, lê--se da mesma maneira), que acho sobrevalorizada relativamente à fonética. E não simpatizo com vãs tentativas de aprisionar uma coisa tão viva e rica como a nossa língua. Por isso, dou às discussões sobre o Acordo Ortográfico a mesma importância que às reivindicações dos Amigos de Olivença. Bizantinices!

(1) Horários do Funchal é o nome da empresa de transportes públicos equivalente à nossa STCP. Perder o horário é a expressão madeirense para perder o autocarro.
(2) Dito por outras palavras, ele estava com precisão de satisfazer as suas necessidades fisiológicas de caráter sólido. 

IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
01/09/13

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