24/10/2013

TERESA DE SOUSA

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Os amigos do TC

As pressões de Bruxelas são inadmissíveis, as de Luanda são entre bons amigos. Há aqui qualquer coisa que não está a bater certo

1.Os angolanos, por razões provavelmente internas, dão-se ao luxo de tratar o Estado português como lixo. Que não somos um Estado de direito, que somos um bando de corruptos, que não querem uma parceria estratégica connosco para que aprendamos que o respeito é muito bonito. Estão naturalmente a ver-se ao espelho. Mas não se pode dizer que a intimidação não dê os seus frutos. Do Governo ao Presidente, estão todos dispostos a vergar ainda mais a espinha para preservar o nosso interesse no mercado e no investimento angolano. Cavaco Silva veio mesmo dizer que o Governo angolano está sustentado em eleições consideradas como livres e justas. (Jacques Chirac, num mau momento, também considerou que Putin era um grande democrata).
Já quanto à Comissão, órgão central do sistema institucional da União, a sensível alma portuguesa está preparada para rechaçar, indignada, a sua ingerência nos assuntos internos do país e nada a incomoda tanto como as pressões inadmissíveis de Bruxelas sobre o Tribunal Constitucional. As pressões de Bruxelas são inadmissíveis, as de Luanda são entre bons amigos.
Há aqui qualquer coisa que não está a bater certo.

2. Escrevi recentemente que um pouco de patriotismo não faria mal a ninguém. Referia-me à lamentável incapacidade das forças políticas que querem manter Portugal no euro e que assinaram o memorando, de se entenderem para negociar com a troika (e com as instituições que representa) soluções mais adaptadas à realidade, sobretudo tendo em vista o falhanço (que já quase ninguém nega) dos primeiros dois anos do programa. Deste patriotismo continuamos à míngua. Tem custos políticos que ninguém quer assumir. O PS prefere esperar que o Governo se desfaça por dentro ou por um segundo resgate para obter o seu momento de glória em eleições que seriam provavelmente antecipadas. Está a fazer mais ou menos o mesmo que Passos Coelho, quando o PSD forçou eleições antecipadas em 2011. É muito mais fácil alimentar tiradas patrióticas contra Bruxelas (ou Berlim).

Não é que as palavras de Jorge Sampaio não façam sentido e não sejam sentidas. Ouvir o presidente da Comissão, num discurso em Portugal, dizer que se houver falta de responsabilidade de todos os órgãos de soberania teremos o caldo entornado, é demasiado ofensivo. Sampaio foi compreensivo quando Barroso, então primeiro-ministro, lhe foi dizer a Belém que tinha a oportunidade de presidir à Comissão, vendo nisso um ganho para o país. Ver agora o mesmo Barroso tratar o seu país desta forma é algo que lhe deve ser insuportável. Mas esse não é o verdadeiro problema.

O problema é este assomo de "patriotismo" na defesa do Tribunal Constitucional, visto como o herói da pátria e do Estado de direito e o último baluarte contra as forças perversas de Bruxelas e dos seus representantes no Governo português. Num país normal, a fiscalização do TC poderia ser utilizada de maneira inteligente pelas forças políticas que assinaram o programa de ajustamento como uma forma de pressionar Bruxelas ou Berlim. Mas para isso era preciso que o Governo não tivesse enveredado pelo caminho das acusações ao TC, sem se dar sequer ao trabalho de justificar cabalmente as suas decisões com uma argumentação fundamentada (parece que desta vez já arrepiou caminho e fez o trabalho de casa). E era preciso também que o PS, em vez de prosseguir no caminho da radicalização, tivesse a mesma atitude. Como nada disto aconteceu, o TC foi transformado como o último reduto contra a troika, uma espécie de governo-sombra a que toda a gente se agarra para determinar as opções políticas do verdadeiro governo. O último episódio fala por si.

3. O relatório enviado pelo chefe da delegação da Comissão em Lisboa sobre o debate que se está a travar em Portugal não é muito diferente de outros, que já me passaram pelos olhos. É uma prática normal das delegações. Pode ser exercida com um espírito mais político ou pode cingir-se a um arrazoado de banalidades que não comprometem ninguém, conforme o perfil do funcionário que a chefia (muitas vezes escolhido por entendimentos políticos entre a Comissão e o governo nacional). Vale o que vale, ou seja, bastante pouco. Não sei se a actual delegação tem enviado também para Bruxelas relatórios sobre o enorme custo social do programa da troika. Se não fez, devia ter feito. Mas, apesar de tudo, tirando uma coisa ou outra com uma linguagem um pouco duvidosa, o que foi transmitido a Bruxelas é grosso modo o que se debate aqui. E aqui o tema central também é em torno do destino "constitucional" deste Orçamento.

O risco de uma crise política caso o TC fizesse uma razia nas principais medidas destinadas a cortar os gastos públicos é a nossa discussão quotidiana. As críticas às decisões anteriores dos seus juízes são o pão nosso de cada dia. Tal como a percepção de que o TC (tribunal político, com 13 juízes eleitos por um entendimento entre os dois maiores partidos) tem de levar em consideração que somos um país do euro e que a lei europeia se sobrepõe à lei nacional. O que também é normal é que os nossos parceiros europeus se preocupem com isso. O que volta a não ser normal é que o mesmo PS que defende publicamente uma solução federal para a zona euro e que assinou o Tratado Orçamental, no qual o nível de "ingerência" nas contas públicas nacionais e das suas políticas económicas são muito maiores, alinhe com os que acusam Bruxelas de se comportar de forma inadmissível. Gostaríamos de perceber qual é então a visão socialista sobre o futuro da Europa.

4. O debate sobre as ordens constitucionais já é velho. Quando a Constituição europeia foi debatida no Parlamento português (teria vida curta por causa do chumbo francês e holandês), alguns eurocépticos e outros tantos constitucionalistas fizeram cavalo-de-batalha com o facto de no novo tratado explicitar que a lei constitucional nacional se submete ao tratado constitucional europeu, o que verdadeiramente já não era uma novidade. A integração europeia assenta numa partilha voluntária de soberania que os seus Estados-membros estão dispostos a aceitar. O euro é a forma mais avançada dessa soberania partilhada. A crise veio alterar as regras dessa partilha, tornando-a mais exigente. A filosofia de Berlim para lidar com esta crise é relativamente fácil de entender: primeiro, a garantia de que as políticas orçamentais dos Estados-membros têm de estar sujeitas a regras comuns muito estritas; segundo, que os choques assimétricos não se podem transformar em crises do euro. Terceiro, se tudo isto for adquirido, provavelmente a Alemanha acabará por negociar uma qualquer forma de aliviar o peso da dívida em alguns países e de dar aos mercados as garantias suficientes para eles olharem para a zona euro de novo com confiança.

Como sempre, preferimos a via mais fácil de ser patriota. O problema é que, na zona euro, o que acontece a um tem repercussões para os outros, como temos aprendido à nossa custa nos últimos dois anos. Nesta Europa nova que estamos a tentar construir, os compromissos vão obedecer a regras muito mais duras. Com TC ou sem TC.

As virgens ofendidas sabem tudo isto. Mas dá muito menos trabalho lançar meia dúzia de invectivas contra Bruxelas do que discutir as coisas a sério. 

A nossa Constituição, apesar das várias revisões, é um documento datado, que corresponde a um país e a uma Europa que já não existem. Temos de olhar para ela com os olhos da realidade actual. 

E podemos ter de alterá-la num sentido que reflicta melhor o nosso lugar na Europa e no euro. Mas estes é outro estúpido tabu em que ninguém quer tocar. Dá muito menos trabalho ser amigo do TC.


IN "PÚBLICO"
20/10/13

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