12/10/2013

ANA CRISTINA PEREIRA

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Quando o chão se abre

Tenho um pesadelo recorrente. Tive-o todas as noites desde que aterrei em Tessalónica, segunda maior cidade da Grécia. Estou a andar, o chão abre-se, não tenho nada a que me agarrar. 
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Talvez seja culpa do Zygmunt Bauman, que ando a ler entre conversas com jornalistas sobre diversidade nos média e conversas com requerentes de asilo, a quem o sociólogo polaco, de modo provocatório, chama “resíduos humanos”, designação que também aplica a desempregados, imigrantes, párias.

Ainda há meio século, os desempregados integravam a reserva que esperava pelo momento certo. A qualquer hora podiam ser convocados para participar no processo produtivo. Na sociedade de consumo, aponta Bauman, são intitulados de excedentários. O “Estado do desperdício” está desejoso de se livrar deles.

“No decurso do progresso económico, as formas existentes de ‘ganhar a vida’ vão-se desmantelando sucessivamente, separando as componentes destinadas a serem montadas outra vez (‘recicladas’) das novas”, descreve no livro “Vidas Desperdiçadas”. Nesse processo, algumas peças ficam sem conserto. Ninguém “traçou de antemão a linha que separa os condenados dos salvos”.

Antes, bastava satisfazer uma série de requisitos para ter lugar. Agora, “não existem pontos de orientação inequívocos nem directrizes a toda a prova”; vive-se sob a “constante ameaça de se ser ‘deixado para trás’, de ‘não se estar à altura das novas exigências’ e (horror dos horrores) ficar fora de jogo”.

O meu pesadelo não é só o meu pesadelo. Talvez o meu pesadelo seja também o seu pesadelo.
Alguns grandes pensadores servem-se de expressões como pós-modernidade, modernidade tardia, segunda modernidade, hipermodernidade. Bauman fala em “modernidade líquida”, pondo ênfase na “incapacidade de reter a forma”, na propensão para mudar à mínima pressão.

Parece-lhe que esta lógica, que é de mercado, impregna até a política e o amor. Sobra então pouco espaço para os ideais, menos ainda para os que exigem esforço. Para o de perfeição nem sobra espaço algum. Esse reduz-se a “um sonho que já não se espera que se torne realidade”.

Bauman está quase com 80 anos. Não acredita em sociedades perfeitas, mas continua a sonhar com um mundo melhor, a questionar a acção dos governos que obedecem às forças do mercado e abdicam de promover a justiça social. Não são as invasivas do Estado que o preocupam, mas “a sua crescente impotência, apoiada pela crença que oficialmente adopta de que ‘não há alternativa’”.

Estou a escrever numa Grécia em queda livre, onde já se discursa sobre o regresso da barbárie e não posso deixar de dizer isto: não podemos impedir um terremoto de abrir o chão, mas podemos não abdicar de amparar as vítimas, de lhes aliviar sofrimento, de lhes restituir dignidade.

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
06/10/13

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