07/06/2013

LUÍS OSÓRIO

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Antes palhaço do que equilibrista
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Chegara-se à conversa final e Daniel Sampaio foi o mais entusiasta. Teresa Ricou, a mulher palhaço, deveria ser a escolhida. D. Manuel Clemente, ao contrário de António Barreto e Cristina Louro, não a conhecia bem. 

Explicaram então ao bispo e recém-nomeado patriarca de Lisboa que Tété era mais do que um palhaço – a escola de circo que fundara, o Chapitô, salvara dezenas de miúdos da marginalidade. Transformara uma prisão de mulheres, o estabelecimento das Mónicas, num lugar que oferecia um destino aos condenados pelo peso da enfermidade social. Para um homem culto como Clemente, a ideia da salvação pela arte bastou para ficar convencido.

A distinção não era de somenos. Atribuído pela Gulbenkian, o Prémio Beneficência escolhia anjos na terra, figuras que pelo seu esforço e convicção se sacrificavam pelos outros e pelo bem comum. Numa época de ferozes e absurdos egoísmos tratava-se mais de um sinal da fundação do que de um prémio. Os júris levaram a sério a premissa.

Anunciada a vencedora, Teresa Ricou deu uma longa entrevista de vida. Notável vida, acrescentaria. Contou das burguesas origens, do passado africano, dos trabalhos, amigos e da vida circense. Regressou a Portugal, logo após o 25 de Abril, e aqui trabalhou com o palhaço Luciano, o chefe dos Faz-Tudo no Coliseu dos Recreios, artista aliás de quem muito se falava em casa da minha família paterna. Tété contracenaria também com Mariano Franco, mestre do sapateado, e abriu o coração de António Reis, sensível a questões artísticas e injustiças, no sentido de transformar o artista do circo num profissional reconhecido pela lei orgânica e, claro, pela secretaria de Estado da Cultura. Reis era secretário de Estado e Teresa confundia-se com a mulher palhaço, rosadinha e a falar à moda da província, a primeira de que havia memória em Portugal. 

«É preciso iluminar os olhos das pessoas e as pessoas estão a perder o seu brilho, os palhaços fazem-no», confessou nessa ou noutra entrevista qualquer. E mais, quando alguém quis saber se palhaço não era uma profissão de menos para uma mulher tão prodigiosamente activa, cortou a conversa pela raiz: «Palhaço foi sempre o que quis ser. Porque os palhaços, quando são verdadeiramente bons, são generosos subversivos».

Evidentemente, o problema não estava, nem podia estar, nestas afirmações gerais e idealistas acerca da nobre profissão de palhaço. Se fossem apenas estas pérolas, D. Manuel Clemente não teria telefonado a, pelo menos, um colega do júri... Também não o faria se o jornal tivesse colocado a sua sem dúvida inefável vida íntima, no meio das outras respostas e sem qualquer destaque. Mas não. A frase bombástica lá estava e fazia a capa da revista: «Fui conhecida como a melhor cama de Lisboa. Desse ponto de vista já estou de barriga cheia».

Clemente teve de se conformar. Talvez na conferência episcopal algum bispo mais venenoso, ou deliciosamente humano, possa ter tocado no assunto, talvez até o futuro cardeal tenha, no fundo dos fundos, achado alguma piada, mas tal não pareceu ao colega do júri que recebeu a sua chamada. Mesmo para um bispo que está do lado dos progressistas do Concílio Vaticano II, os anjos não podem deixar de ser o que sempre foram: irremediáveis assexuados.
Uma grande palhaça. Com quem estive uma ou outra vez, uma força da natureza. Disse-me só ter medo de lagartixas, cobras e do reptilário do Jardim Zoológico, de resto eles que viessem. De facto, assim se provava que nem a mais original das criaturas conseguia ser original em tudo. No resto, Tété é um rolo compressor de surpresas, inovação e criatividade. E mesmo sem a sua confessada especialidade em actividades lúdicas entre quatro paredes e colchões, partiria à mesma com a barriga cheia.

Andou num colégio de freiras, ‘enlouqueceu’ positivamente ao ver Jean Seberg a vender jornais no Acossado, de Godard. Seduzida de tal maneira que não descansou enquanto não fez o mesmo em Paris – é engraçado como esta história me faz lembrar o breve romance dos meus pais na cidade-luz e a confissão de minha mãe de que numa noite, cheios de fome e sem dinheiro, não tiveram outro remédio se não ‘assaltar’ um supermercado. Com inegável talento, de que me orgulho, guardou um frango assado dentro da gabardine.

O que posso dizer mais? Que trabalhou para um laboratório a colocar etiquetas em medicamentos, que serviu em restaurantes, lojas e na TAP, onde vestiria a farda de hospedeira. E que, tão importante como tudo isso, era a segunda filha de Eduardo Ricou, médico especializado em leprosos, um homem de bem. Ele, de origem suíça, e a mãe, Alda, brasileira com sangue italiano, escolheram África para, palmo a palmo, encontrarem e tratarem os que precisavam de ser encontrados e tratados. Leprosos que sempre fizeram parte da infância e juventude de Tété. Dançava descalça na terra batida e nunca o pai a proibiu de estar com os doentes. Pessoas como ela, dizia-lhe. 

Hoje é menos mulher palhaço e mais empreendedora. O Chapitô, talvez o melhor lugar para jantar em Lisboa, é hoje um grande projecto artístico e de beneficência. Todos os anos lectivos entram novas crianças em risco de se perderem, jovens marcados pelo destino que trata com o mesmo espírito que o pai cuidava dos seus leprosos, encontra-os e abre-lhes os olhos para o mundo do circo, a arte que aprendeu a amar.

Alguns querem aprender a ser equilibristas. Certamente que não os demove nem lhes trava a liberdade de escolha, imagino porém que lhes pergunte se não desejam a melhor de todas as profissões. Como a compreendo. Também eu lhe(s) perguntaria: para que queres ser equilibrista toda a vida se podes ser reconhecido como um verdadeiro palhaço?

IN "SOL"
04/06/13

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