Sempre gostei de ti
"Ela sozinha, ela independente, ela livre, professora numa
faculdade ou isso, a sombra do sorriso de dantes aguentava-se, as
covinhas também, mas a gordura, as rugas, o cabelo, as sardas nas costas
da mão, quem te deu licença de te tornares assim, quem me deu licença
de me tornar assim, o que vale aquilo que somos agora, o que podemos
fazer"
Passados muitos anos ela disse-lhe
- Sempre gostei de ti, sabias?
e ele espantado: nem sonhava, era muito novo, quinze ou dezasseis
anos, não reparava nessas coisas. Ficou a olhá-la, sem acreditar
- A sério?
e o que via era uma senhora de cinquenta anos que engordara, ganhara
rugas, pintava o cabelo, mantinha, quando muito, uma sombra do sorriso
de dantes no sorriso de agora, as mesmas covinhas nas bochechas, os
mesmos olhos redondos mas com pálpebras diferentes, pregas injustas no
pescoço, essas sardas que, a partir de certa altura, começam a aparecer
nas costas das mãos, pernas espessas, sem tornozelos, onde pernas
estreitas dantes, a cintura substituída por um relevo redondo.
Espantou-se também com isso, com a crueldade das mudanças dela,
esquecido, por instantes, da crueldade das mudanças dele, o cabelo ralo,
os óculos, a cicatriz da operação a uma coisa na pele a que torceram o
nariz no hospital e, no entanto, correu bem, ficou o lábio um bocadinho
repuxado, ficou uma órbita mais redonda do que a outra, mas agora só
precisava que o vissem de ano a ano
- Teve muita sorte
e ele grato à sorte às vezes, outras nem por isso, ao pensar
- No fundo qual é a piada de estar vivo?
e a arrepender-se logo da frase, não fosse o destino tomá-lo à letra e
mandar-lhe outra coisa na pele ou noutro sítio qualquer, o que não
falta numa pessoa são sítios para as doenças, a quantidade de tralha que
a gente tem cá dentro. E agora, de repente, salta-lhe do passado, sem
mais nem menos, aquela rapariga
(rapariga?)
com uma pergunta que o deixou banzo
- Sempre gostei de ti, sabias?
ele que tinha a certeza que ela nem reparava, a cochichar com as
amigas, toda segredos e alegrias, na sua ideia indiferente a ele,
indo-se embora sem o olhar sequer. Lembrou-se de uma ocasião lhe terem
deixado uma prata de chocolate azul no livro de Geografia, de se demorar
na prata a pensar - Quem meteu isto aqui?
saltou-lhe, quase sem querer
- Foste tu quem meteu uma prata de chocolate no meu livro de Geografia?
e a rapariga à sua frente
(rapariga?)
a corar, que estranho como, apesar da idade, as mulheres ainda coram, ainda apertam os dedos uns nos outros, ainda perguntam
- A sério que nunca deste por nada?
e claro que nunca deu por nada, acabou por deitar a prata fora, que
patetice, ele com uma vontade súbita de reaver a prata, tirá-la da
carteira, por exemplo, e mostrar-lha
- Olha
e ela mais corada ainda, apertando mais os dedos uns nos outros,
erguendo um ombro, ela enternecida, quase à beira das lágrimas que se
percebia pela tremura das pálpebras, ela, feliz
- Obrigada
porque afinal ainda existia, ainda era nova, ainda tinha esperança, ela divorciada
- Há séculos
um neto com dois anos do filho emigrado na Holanda
- Casou com uma holandesa, é engenheiro
e portanto ela sozinha, ela independente, ela livre, professora numa
faculdade ou isso, a sombra do sorriso de dantes aguentava-se, as
covinhas também, mas a gordura, as rugas, o cabelo, as sardas nas costas
da mão, quem te deu licença de te tornares assim, quem me deu licença
de me tornar assim, o que vale aquilo que somos agora, o que podemos
fazer, ela
- E se a gente almoçasse um dia destes?
ele a concordar com entusiasmo para dentro e, no entanto, calado
porque as pernas, porque os tornozelos, ela a compreender melhor do que
ele pensava
- Alterei-me muito, não foi?
e a tremura das pálpebras a aumentar, uma lágrima, desta feita presente, a embaciar-lhe o sorriso
- Sempre gostei de ti
a frase não jovial, trémula
- Sempre gostei de ti
a lágrima apanhada com o mindinho
- Interessa-me lá como tu és agora
não lhe interessava a ela como ele era agora mas interessava-lhe a
ele como ela era agora, meu Deus o que faço eu com o convite do almoço,
desculpou-se
- O melhor é dares-me o teu telefone e eu depois ligo
e não ligar, é evidente, sobretudo não ligar, gordura, rugas, as
raízes do cabelo grisalhas, nem pensar em ligar, para quê, para sentir
pena de si mesmo, para sentir pena dela, recebeu uma página de agenda
com um número escrito e enfiou-o na algibeira sem olhar para ele
- Assim que nos separarmos vai fora
não lhe entregou o seu, claro, cair numa asneira dessas nem sonhar,
ainda me chama mesmo e depois, separaram-se com um par de beijinhos
castos que ele desejaria mais rápidos e nem olhou para trás, quais
cinquenta anos, cinquenta e cinco no mínimo, que horror tudo isto, que
pesadelo, que estranho e, ao mesmo tempo as covinhas, o sorriso, os
olhos redondos, que lindos os olhos redondos porém agora as pálpebras
diferentes e as sardas nas costas das mãos, o que lhe repugnavam sardas
nas costas das mãos, a avó dele assim e o susto dela lhe tocar, ele a
implorar calado
- Por favor não me toque, senhora
de maneira que amarrotou a página da agenda no bolso antes de puxá-la para a deitar fora e só ao abrir discretamente
(era a favor da higiene nas ruas)
a palma para que a folha com o número caísse no chão reparou que era uma prata de chocolate azul.
IN "VISÃO"
11/04/13
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