Pensar o crescimento
Vivemos hoje entre estereótipos de todos os tipos, que se repetem "ad nauseam" sem a mais elementar reflexão. Ora se atira com palavras malditas, esperando que elas se colem aos bodes expiatórios do momento, ora se invocam palavras mágicas, de que se esperam todos os milagres.
A oposição austeridade/crescimento tem sido um bom exemplo desta oscilação entre palavras malditas e palavras mágicas. Que assim esconde um sofisma de fundo que, como já tenho dito, se encontra no facto de os defensores da austeridade fingirem ignorar as suas consequências, e os paladinos do crescimento fingirem conhecer as suas causas.
Acontece que, agora, já todos conhecemos bem os efeitos da austeridade, tornando-se o fingimento numa audácia perversa, a que só alguns cínicos se aventuram. Mas o mesmo não se pode dizer do crescimento e das suas causas: vale por isso talvez a pena alinhar, a propósito, três reflexões.
Em primeiro lugar para lembrar que, na história da humanidade, o crescimento é algo extremamente recente, de que na verdade só se pode falar a partir de meados do século XVIII, com a primeira revolução industrial e com as consequências da invenção da máquina a vapor e do caminho de ferro. Até então calcula-se que a evolução do PIB per capita tenha sido algo de incipiente, na ordem dos 2% ao ano: a produção de riqueza só crescia, na realidade, com o aumento da população.
A grande mutação dá-se com a revolução industrial, em meados do século XVIII, e sobretudo com a segunda revolução industrial, que desencadeou entre finais do século XIX e os anos 70 do século XX uma das maiores transformações - senão mesmo a maior - que até hoje conheceu a existência humana. Foi no decurso deste processo que ganhou cada vez mais peso e sentido falar-se de crescimento, em ligação com a economia.
Contudo, ao analisar este processo num estudo recente, Robert J. Gordon veio colocar uma questão muito pertinente, perguntando se, ao contrário do que normalmente se diz quando se fala de crescimento, este processo não terá antes sido algo de excecional, e talvez irrepetível, na história dos povos que o viveram. A questão merece, como facilmente se deve compreender, a maior das atenções (cf. "IS U.S. economic growth over? Faltering innovation confronts the six headwinds", do National Bureau of Economic Research).
Sobretudo porque esse crescimento decorreu de um concurso de circunstâncias absolutamente extraordinárias, quase incomensuráveis, como a da substituição da força animal por uma tração motorizada cada vez mais forte e mais veloz, a da passagem das águas correntes para a água canalizada (e os esgotos), da troca da madeira e do carvão pelo petróleo e pelo gaz, enquanto a lâmpada elétrica fazia desaparecer as velas e os aparelhos elétricos mais variados revolucionavam completamente tanto as comunicações como os lazeres e a vida doméstica.
A isto é ainda preciso acrescentar, para se ter bem em conta a gigantesca amplitude das mudanças que acompanham a segunda revolução industrial, a industrialização da sociedade, a brutal diminuição da população rural, o aumento de esperança de vida (que, atenção, foi maior na primeira metade do século do que na segunda!), a queda da mortalidade infantil, a urbanização tão generalizada como intensiva e, ainda, a emancipação das mulheres e a sua entrada maciça no mercado do trabalho.
Foi isto o crescimento, como bem mostra Robert J. Gordon. Ele consistiu no resultado desta vasta e inédita multiplicidade de fatores, que se conjugaram e concentraram em cerca de dois séculos e meio, mudando completamente as condições de vida dos indivíduos e das sociedades.
Em segundo lugar, convém ter presente que tudo se tornou mais impressionante quando, em meados do século passado, na Europa do pós-guerra se descobre que as políticas ativas de controlo e de orientação económica, desenvolvidas sob o impulso do Plano Marshall, tinham levado o PIB a crescer 30% em quatro anos, entre 1947 e 1951. As consequências políticas desta descoberta, cujo segredo se procura então decifrar e sistematizar, seriam imensas.
Como sintetizou Marcel Gauchet, no último volume da sua impressionante trilogia sobre "L'avènement de la démocratie", "o crescimento torna-se então no objetivo que vai condicionar todos os outros. Um objetivo que torna obsoleta a querela entre liberais e socialistas. Não só justifica a intervenção do Estado para garantir a condução da conjuntura, de modo a manter o ritmo do crescimento, como legitima a sua projeção no futuro". (p.584)
O crescimento passa desde então a ocupar o centro de gravidade da política, alterando os termos do debate político e fixando uma nova ordem de prioridades, tendencialmente consensual na medida em que o "crescimento tem, com efeito, esta virtude extraordinária de permitir dar muito aos que têm pouco, tirando pouco ao que têm muito", diz ainda M.Gauchet. E assim se abriu um ciclo que só será abalado pela crise do petróleo dos anos 70, e depois mais decisivamente pela globalização a partir da década seguinte.
Por tudo isto - e é esta a terceira reflexão -, quando hoje se apela ao crescimento, é importante que se ultrapassem as fórmulas de encantação mais ou menos mágica e se procure dizer de que é que se está realmente a falar, explicitando qual será a mola e o élan, quais serão os fatores e as apostas que, nas atuais circunstâncias do mundo, da Europa e de Portugal, poderão promover um tal processo. A questão é evidentemente difícil, mas não pode de modo algum ser escamoteada.
Nomeadamente porque quando olhamos para a terceira revolução industrial - dos computadores, da internet, do telefone portátil, etc. - não se observa nada de semelhante à dinâmica económica e social que tiveram as revoluções industriais anteriores, nomeadamente a segunda. Pelo contrário, o que se vê quando se faz essa comparação, é que a tão incensada inovação atual aparece afinal como lenta, anémica, quando não insignificante.
Robert J. Gordon pergunta a propósito - e um pouco provocadoramente -, para que se avalie bem esta diferença, o que é que escolheríamos se tivéssemos que optar mesmo entre a água corrente e a casa de banho individual, por um lado, e os gadgets informáticos da última década, por outro...mas a resposta não parece difícil!
E o que se observa também, para complicar ainda um pouco mais a situação, é que a revolução informática se desenvolve numa lógica económica em que o crescimento decorre mais da redução de custos do que do aumento da produção. Facto que, se for - como deve - conjugado com fenómenos hoje incontornáveis, como o aumento do custo da energia, o esgotamento dos recursos naturais, a crise demográfica ou o endividamento público e privado, traça um quadro muito exigente e complexo para as perspetivas de crescimento futuro.
O País precisa de mudar de onda e de eixos. Precisa sobretudo de uma estratégia nacional que, para lá do sofisma austeridade versus crescimento, consiga combinar criatividade com eficácia, e rigor com desenvolvimento, fazendo da exigência de justiça social o grande polo agregador da motivação dos cidadãos. É este o trabalho alternativo que importa fazer com urgência, no quadro nacional, europeu e global.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
29/11/12
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