21/12/2012

ALBERTO GONÇALVES

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A fome e a vontade de comer 

Segundo o próprio, Mário Soares não viu tanta fome em Portugal "nem no tempo de Salazar". O que explica isto? Na versão clínica, talvez a hipótese de a memória do dr. Soares sofrer de alguns percalços. Na versão conspirativa, talvez a hipótese de o dr. Soares afinal não passar de um revisionista de Maio disfarçado de campeão de Abril. Na versão plausível, talvez a hipótese de o dr. Soares proferir os disparates que julga necessários aos seus objectivos.
Hoje, é ele mesmo quem confessa: "Toda a gente diz na televisão que não há dinheiro para comprar pão, para comprar nada, tem de ir pedir, ir aos caixotes de lixo. Alguma vez se viu isto em Portugal? Eu tenho 88 anos e nunca vi. Sinceramente nunca vi, nem [todos juntos, agora] no tempo de Salazar." Em suma, a perspectiva histórica de um dos maiores vultos do Portugal contemporâneo fundamenta-se exclusivamente no que lhe chega através dos "telejornais", inexistentes ou inconsequentes durante o Estado Novo e incansáveis em denúncias, com ou sem aspas, desde que, para irritação de muitos amigos do dr. Soares, Cavaco Silva abriu as ondas hertzianas à iniciativa privada.
O dr. Soares responde por ele, mas num país menos exótico atoardas assim não se limitariam a demonstrar ignorância ou má-fé: prejudicariam a causa que actualmente o motiva, leia-se o derrube do Governo. O Governo é uma desgraça? Com certeza. Sucede que, em primeiro lugar, não é uma desgraça pelas razões avançadas pelo dr. Soares, já que uma política que esfola os contribuintes para preservar o Estado lembra bastante mais o socialismo do que o mítico "neoliberalismo", esse consolo dos simples. Em segundo lugar, o Governo não é uma desgraça comparável à regência de Salazar pela prosaica razão de que, ao contrário deste, o dr. Passos Coelho foi livremente eleito por uma razoável quantidade de cidadãos, eventualmente superior às 70 ou 80 alminhas subscritoras da carta do dr. Soares a pedir a demissão do primeiro-ministro. Em terceiro e último lugar, as hipérboles tendem a ridicularizar os seus autores, e só um território de pasmados justifica a tolerância de que o dr. Soares dispõe.
Sem dúvida que a iliteracia do tempo facilita o exercício. Bush invade o Afeganistão e o Iraque? Bush é igual a Hitler. Israel defende-se de ataques terroristas? Os líderes israelitas são iguais a Hitler. Merkel recusa financiar-nos incondicionalmente? Merkel é igual a Hitler. Os novos mapas do iPhone não primam pelo rigor? A Apple é pior do que a Gestapo. Até ver, o dr. Passos Coelho fica-se pela equivalência (desfavorável) a Salazar. Se, um dia, executar uma reforma digna do nome, é garantido que a rigorosa escala do dr. Soares o colocará a par do Führer, o padrão de medida em vigor. Não seria mais idiota se comparássemos o dr. Soares por exemplo a Estaline, com a atenuante de que o dr. Passos Coelho nunca integrou a Mocidade Portuguesa nem alimenta simpatias evidentes pelo Terceiro Reich, enquanto o "pai da democracia" serviu indirectamente o "pai dos povos" ao longo de sete anos. Contra Salazar, que pelos vistos não merecia a desfeita. 

Quarta-feira, 12 de Dezembro
Dificuldades de aprendizagem

É aborrecido que um forasteiro procure evangelizar os nativos, mas o chefe da missão local do FMI resumiu tudo numa frase: Portugal pode ter um grande Estado providência desde que consiga financiá-lo. Um truísmo? Teoricamente, sim. Na prática, não. Conforme todos os dias se constata, inúmeros portugueses acham vigorosa e, ao que parece, sinceramente que os direitos do assistencialismo não implicam o dever de o pagar - de alguma maneira, alguém, seja a divindade seja a "Europa", o fará por nós. Por manifesto azar, nem o Céu nem a Alemanha estão voltados para a generosidade, donde o actual fosso a separar as expectativas da realidade e a geral confusão que por aí vai.
Por um lado, os cidadãos ignoram ou fingem ignorar que aquilo que o Estado lhes "dá" é uma fracção daquilo que o Estado lhes retira. Por outro lado, os políticos convenceram-se ou fingiram convencer-se de que o Estado só poderá aumentar as "dádivas" se aumentar os gastos. Qualquer pessoa com um vestígio de lucidez perceberia o carácter alucinado destes pressupostos. Infelizmente, a lucidez ganhou aqui escassos adeptos, pelo que o sr. Abebe Selassie arrisca-se a assemelhar-se ao professor que explica física quântica a alunos modestos em aritmética básica. No caso presente, os "alunos" não dominam literalmente a aritmética e, perante a impossibilidade de dois mais dois serem cinco, insistem em corrigir as parcelas e não a soma.
Exagero? Quem dera. Ainda esta semana, a ex-secretária de Estado dos Transportes Ana Paula Vitorino declarou que a suspensão do TGV representou "um profundo retrocesso" para a economia. Dado que a dra. Ana Paula não é famosa pelos dotes de comediante, presume-se que falasse a sério. E a sério falam resmas de socialistas, comunistas e até governantes em funções quando lamentam a recente dificuldade em torrar o dinheiro que não possuímos. O pobre sr. Selassie anda a tentar ensinar-nos em meses aquilo que séculos de História não consegui- ram. Como os estrangeiros, aliás, já deviam ter aprendido, Portugal não aprende.

Quinta-feira, 13 de Dezembro
Erros da juventude

Há quase trinta anos, valha-me Deus, a banda pop The Smiths constituía uma parte importante da minha vida. Suponho que no início da adolescência haja muitas vidas assim heróicas e ridículas, dedicadas ao culto de certas canções e das criaturas que as fazem. No meu caso, as canções dos Smiths e do seu principal criador, Steven Morrissey. Não satisfeito por dissecar cada verso cantado, a obsessão levava-me a sorver as opiniões faladas pelo sujeito nas inúmeras entrevistas que concedia. Os versos eram, achava-o então e mantenho hoje, tocantes; as opiniões, uma calamidade panfletária, que na altura eu tomava por verdades universais. Infelizmente, a única verdade nesta história é a seguinte: além de uma personagem curiosa, Morrissey é um cretino, tolhido no berço por complexos de "classe" (o homem nasceu nos meios operários de Manchester) e tolhido na idade adulta por um ego devida ou indevidamente insuflado (o homem continua a dispor de adoração quase religiosa).
Vem isto a despropósito do episódio do telefonema da "Rainha" para um hospital londrino e da enfermeira inglesa de ascendência indiana e nome português que se suicidou após engolir a brincadeira de dois radialistas australianos. Morrissey, sempre mortinho por expelir ódio na direcção da família real, responsabilizou-a pelo sucedido, sobretudo a destinatária do telefonema, nora do príncipe herdeiro, que nas palavras do cantor "não disse nada sobre a morte desta pobre mulher". Por acaso, disse: em comunicado emitido logo após a tragédia, a senhora e o marido declararam-se "profundamente tristes" perante a notícia. Mas o respeito pelos factos nunca foi o forte de quem uma vez acusou Churchill de enviar jovens para a guerra sem motivo.
Morrissey tem razão quando refere o absurdo interesse dos media pelos assuntos (ou a falta deles) relativos à realeza. Perde a razão quando se esquece de alargar a crítica ao interesse dos media pelos palpites de vedetas do espectáculo, incluindo os seus. Mesmo algo excêntricos se comparados com a bitola do sector e fascinantes se comparados com o grau zero do discernimento (não é fácil descer ao nível de Sean Penn), os alívios verbais de Morrissey não o distanciam dos colegas do show-biz e da pelintra racionalidade contemporânea, que detecta a intervenção de entidades superiores em todas as desditas na Terra. Sobretudo os alívios não afectam a monarquia: afectam-me a mim. Ou o moço crédulo que fui. 

Histórias da emigração

O que faz andar o Álvaro ou, na versão respeitosa e portuguesa, o dr. Santos Pereira? Desde o início que o seu papel no Governo parece ser o de oferecer uma referência de sensatez face aos disparates dos colegas - e de ser desautorizado pelos mesmos logo a seguir. Há dias, foi a responsável pela Agricultura, o Ambiente e as Galinhas a enxovalhar a (razoável) opinião do ministro da Economia sobre os "fundamentalismos" ecológicos na legislação europeia. Noutros dias foram outros ministros ou luminárias a praticar o tiro ao Álvaro, modalidade aliás também em voga nos media, que nos momentos de exaltação procuram transformar o homem numa anedota e nos momentos de doçura concluem que ele "não é político". Não sei. Sei que para trocar o Canadá por isto o homem talvez seja é maluco. No mínimo, o único português que em vez de partir regressa é um excêntrico. 


IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
16/12/12

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