26/10/2012

FRANCISCO MADELINO

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Multiplicadores  e                       
                             imparidades:
                     a ideologia disfarçada de ciência 

Qualquer construção duma saída realista para estes tempos, congregadora da sociedade portuguesa, em torno dum contrato social alargado, tem de incorporar duas palavras: realismo e futuro. Realismo, pois não há solução possível que reponha a vida como antes da crise. Futuro, no sentido em que há um caminho, uma via, não empobrecedora, mas de progresso. Não se vê outra forma de encontrar uma saída em democracia.

Criar ilusões agora, alimentar soluções demagógicas, desvirtuar a realidade, não é fomentar este contrato social. É, antes, alimentar um populismo que se virará contra os seus criadores e, em última, instância contra a democracia.

Concentrar a atuação, como tem vindo a ser feito desde 2011, numa austeridade agressiva, feita radicalmente, sobre os povos sujeitos a reajustamentos orçamentais através de memorandos, mas generalizada a todo o espaço europeu, tem demonstrado que não contribuiu para os ajustamentos pretendidos. A elasticidade da receita à carga fiscal baixou radicalmente, tornando-se, nalguns casos, mesmo negativa. Simultaneamente, o PIB, denominador do indicador fundamental, tem sucessivamente descido. O resultado é que os objetivos definidos não estão a ser atingidos, apesar dos efeitos sociais e económicos destrutivos.

Assistimos, dramaticamente, à repetição da história de 1929. Na época, só depois de quase uma década de políticas restritivas se partiu para outras soluções e outras abordagens.

O caso dos multiplicadores do FMI é demonstrativo de como a doutrina ideológica, subjacente às decisões, secundarizou o impacte da crise. Observando-se agora que a realidade falsifica os seus pressupostos, minimiza os erros, como se de meros erros técnicos se tratassem e não dos pressupostos. Foi aliás, também, este suposto capitalismo científico, autor dos modelos de diversificação do risco bancário, subjacentes à alavancagem financeira e à colaterização da dívida, numa abordagem análoga, que muito justifica a crise que vivemos. A palavra multiplicadores, assim como tinha sido a de imparidades, poderiam ser sinónimos de erros crassos e, no último caso, até de mecanismos, em parte, fraudulentos, mas postas assim são palavras higienicamente tecnocráticas.

O debate que vivemos nos últimos dias, em que o FMI admitiu o erro sobre os efeitos da crise, sobre os denominados multiplicadores, é exemplar dos tempos vividos. O FMI previu que cada 1 euro cortado na despesa pública teria um impacte de -0,5 euros no PIB. Reconheceu agora que o impacte oscilou entre -0,9 e -1,7, ou seja, no último caso, quase três vezes mais. O impacte da austeridade foi assim significativamente maior.

O debate sobre os impactes da austeridade tinha sido, precisamente, o tema de discordância no mundo da economia e da política. As soluções apresentadas agravariam ou não os problemas, discutia-se. O erro não é um pequeno engano, portanto, supostamente técnico. Tem consequências sobre escolhas subjacentes às soluções. É um erro fundamental, em que a realidade falsificou a teoria, logo, se de ciência se tratasse, onde a realidade demonstrou a falsidade dos supostos argumentos científicos.

A hipótese de partida, que 1 euro significaria apenas uma redução de 0,5 no PIB, sabendo-se que os Estados gastam valores próximos de 50% do PIB, implicaria admitir que há apenas um efeito direito, e não há efeitos negativos significativos da redução da despesa pública, incluindo através dos estabilizadores automáticos, como os subsídios de desemprego.

Em síntese, esqueceu um dos principais ensinamentos de Keynes, relembrado por Krugman, que uma coisa é reduzir a despesa num agente económico, outra na generalidade dos agentes nacionais ao mesmo tempo e outra ainda em vários países simultaneamente. O processo orçamental no Estado e no país não pode ser visto da mesma forma como numa empresa ou numa família, como frequentemente se diz.

A realidade portuguesa é exemplar destes erros de partida. No último Boletim de Conjuntura do INE, os indicadores de clima económico e atividade económica diminuíram, interrompendo as ligeiras melhorias dos meses anteriores. Na razão desta inversão estão certamente as revisões em baixa do crescimento económico nas principais economias europeias, mas sobretudo a crença generalizada de que as medidas, dadas a conhecer e subjacentes ao Orçamento do Estado para 2013, terão efeitos devastadores. E a crença que o OE é de quase impossível execução.

O PÚBLICO, aplicando o efeito dos multiplicadores revistos pelo FMI às medidas de austeridade previstas para 2013, apresentou uma perspetiva devastadora para a evolução da economia nacional em 2013, com o PIB a decrescer entre 2,8 e 5,3%, conforme os multiplicadores fossem de 0,9 ou 1,7. Espantosamente, dias antes, o FMI, membro da troika, tinha aceite o cenário macroeconómico inerente à proposta portuguesa de Orçamento para 2013, somente com menos 1% do PIB. Entre uma coisa e outra algo não joga bem, e entre -1 e -5,3%, vão estimativas de receita substancialmente distintas.

Em síntese, não se vê como é que um país que, em 2013, pagará 5% do PIB em juros, com a própria troika a taxar os empréstimos a 5% (quando, por exemplo, pagávamos valores abaixo de 3% antes de entrar no euro), que estima atingir uma dívida pública, ainda este ano, de 119,5% do PIB (quando no início previu 112,5%), cujos encargos dela são 9,2% do Orçamento, possa continuar a fazê-lo, sem ter crescimento económico e ajustar as contas públicas e externas no tempo.

O Estado tem de ajustar a sua despesa, não podendo esta ser o prolongamento da tendência do passado, muito menos com as alterações demográficas vividas. Isto implica, contudo, uma análise profunda da despesa pública, uma saída europeia para o financiamento da dívida, com valores de juros compatíveis, mas sempre com o crescimento económico. Reduções bruscas da procura interna e agravamento enorme da pobreza, podem fazer baixar enganadoramente o défice externo, mas tornam inviável, económica e socialmente, o país e, sobretudo, a sua democracia.

Professor do ISCTE, ex-presidente do IEFP. 
O autor escreve ao abrigo do novo acordo ortográfico.

IN "PÚBLICO"
22/10/12

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