14/09/2012

VICENTE JORGE SILVA

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O serviço público não é a RTP

Na sua coluna de opinião no Público da passada terça-feira, Paulo Rangel, eurodeputado do PSD, escreve que «a decisão de privatizar a RTP foi ratificada pelos portugueses nas eleições de 2011: quando votaram, os eleitores estavam plenamente advertidos e conscientes de que aquela intenção constava do programa eleitoral do partido que acabou por sair vencedor».
Jurista como é, Rangel dá uma grande importância aos formalismos (até que ponto, de facto, os eleitores estavam «plenamente advertidos e conscientes» sobre aquele ponto isolado de um programa político?). E, enquanto militante do PSD, não desejará incorrer no pecado da infidelidade partidária (apesar da reconhecida independência de opinião que tem manifestado a propósito de variados temas).
Mas existe uma flagrante contradição entre a posição de princípio do eurodeputado, navegando cautelosamente entre os inenarráveis acidentes e confusões partidárias deste processo, e o ‘estado de alma’ de Rangel sobre a RTP. É que, para ele, a «RTP é uma instituição, uma instituição sedimentada e radicada na sociedade portuguesa, com a qual os portugueses desenvolveram um sentimento de afeição e de pertença» (?). E sublinha ainda: «A RTP, enquanto instituição, não é apenas património material do Estado, é património imaterial dos cidadãos» (!).
Dito isto, como é que se pode aceitar, seja a que pretexto for, a privatização ou a concessão da exploração por terceiros daquilo que constitui não apenas «património material do Estado» mas também «património imaterial dos cidadãos»? Este estatuto de santidade estatal e de cidadania deveria ser rigorosamente intocável e colocado acima de quaisquer derivas ou «tentações revolucionárias» (para recorrer a uma outra definição de Rangel). Tal como a pátria, a RTP não deveria discutir-se…
Ora, o que tem envenenado muitas discussões é a confusão entre o suposto corpo místico ou «imaterial» da RTP e o serviço público audiovisual que compete ao Estado assegurar, sobretudo em tempos de grave crise nacional como aqueles que vivemos.
Além disso, não me parece de todo que a RTP da época da ditadura ou a RTP persistentemente governamentalizada depois dela, a RTP que agora se limita essencialmente a concorrer com os modelos das televisões privadas generalistas ou a RTP com programação aflitivamente desconchavada dos canais internacionais, enfim, a RTP que existiu ou existe hoje – ressalvando porventura os tempos já longínquos de Soares Louro, Fernando Lopes e Graça Moura – possa representar a nobre e fundamental missão do serviço público.
É aliás nesse equívoco que acabou também por alinhar o recente manifesto contra a privatização do serviço público, como se este pudesse ser encarnado por uma instituição que, salvo muito raras excepções (alguns programas da RTP-2, como Câmara Clara, ou passagens episódicas e desgarradas de documentários ou ficções de qualidade), se tem deixado enredar numa máquina burocrática, corporativa e dispendiosíssima que tritura a criatividade e a pluralidade indispensáveis a um serviço público digno desse nome. Um serviço público que, de resto, chega a ser melhor representado por alguns canais informativos privados do que pela RTP (e, designadamente, pelo seu oficiosíssimo canal público de informação).
A questão prioritária – como tenho vindo a escrever nestas colunas – é, pois, a natureza e as formas de difusão que deve assumir o serviço público audiovisual, colocado sob uma tutela com garantias estritas e constitucionais de desgovernamentalização e sem obediência a quaisquer formas de propaganda oficial, a exemplo do que acontece com a BBC.
Definidas regras, conteúdos programáticos e canais de difusão – sem exclusão dos privados que estejam abertos a cooperar em espaços coerentes com esse objectivo –, cabe a uma futura televisão do Estado assumir a missão cultural e de coesão nacional de trazer aos públicos mais variados e minoritários os programas alternativos que as televisões comerciais não estão vocacionadas para oferecer.
Ao longo da vigência deste Governo perdeu-se já demasiado tempo com aterradores disparates e inconfessáveis manobras politiqueiras, quando a urgência seria, precisamente, proceder àquilo que parece temer Paulo Rangel. A recusa de libertar o serviço público da herança mais funesta da RTP implica deixar tudo na mesma, para proveito de quem está sobretudo interessado no imobilismo. É preciso, de facto, uma revolução. 

IN "SOL"
10/09/12

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