01/09/2012

LÍLIA BERNARDES

  

Na terra 
    do fertilizante assassino 
de venda livre 

Falo da hipocrisia da venda livre de um fertilizante assassino vendido por tuta e meia que mata sem remissão de pecados 

Nos finais dos anos 80, a zona velha da cidade estava cheia de "erva". alguma plantada nos jardins públicos. O haxixe entrara havia pouco tempo. E a cocaína era "coisa para ricos, senhores de carros metalizados, lá para cima...para os lados do novo turismo". Era assim que se falava. Nesta cidade antiga de mercadores, com cheiro a marinheiros, prostitutas e gente de má fama, havia uma mistura engraçada de malta que vinha das artes, do teatro, das poesias ditas num palco improvisado, mistura com jovens que já faziam viagens a Lisboa e iniciavam o tráfico de tabletes castanhas moldadas em palmilhas partilhando, assim, o odor dos ténis sem marca. 

Lembro-me de uma das primeiras reportagens que fiz para a Revista de Domingo deste Diário, intitulada "Zona Velha SOS", e apanhei logo com as críticas do costume.  Ou seja, para os responsáveis da altura e que são os mesmos de agora não estava a acontecer nada. Era tudo invenção jornalística num momento em que o alerta era um apelo à intervenção imediata.

Nessas noites de caneta e bloco acompanhada pelo Marote ou pelo Spínola de máquinas com rolo a preto e branco, dois grandes fotógrafos, andámos pelas ruas de Santa Maria, Largo do Corpo Santo, tabernas, bares e esquinas, praia de santiago a altas horas e vimos de tudo. Achava eu, na altura. Hoje penso que aquilo não era nada. Era, sim, o embrião de algo que se alastrou como uma onda gigante que varreu as ilhas. Nesses anos, crianças (sim, crianças) vendiam medicamentos,  100 escudos cada comprimido, não digo o nome para não dar ideias, e que eram roubados, surrupiados aos avós,  a pessoas de terceira idade. Vendiam para depois serem engolidos com uma mistura de álcool e a garantia de pedrada certa. Se a zona velha foi durante anos a má da fita, e enquanto se achava que o caso era circunscrito a um terreiro, o negócio da droga ganhava proporções alarmantes. Em roda livre subiu a avenida. 
A heroína passou a entrar directamente nas veias e atravessou a sociedade não escolhendo  classes sociais. Antes pelo contrário, enquanto andavam uns tristes amarrados ao haxixe porque não tinham mais de 500 paus para investir numa "chinesa" partilhada, os que tinham dinheiro, sobretudo da mesada choruda dos pais, mergulhavam de cabeça do "pó de anjo". Depois tudo desabou.

Vieram os processos de desintoxicação, a luta para que as escolas não fossem atingidas, as campanhas umas atrás das outras, SIDA no vocabulário e o sindroma transferido pelas seringas e as vidas desfeitas. As mortes. As angústias mas ainda a esperança de que, um dia, uma limpeza total poderia devolver a realidade a quem dependia da alucinação e do entorpecimento. Os dias e os anos passaram e eis quando surge no mercado livre a pior das drogas, não falo da metilenodioximetanfetamina, a pílula do amor mais conhecida por ecstasy, uma droga sintetizada, feita em laboratório, e que é ilegal.

Falo da hipocrisia da venda livre de um fertilizante assassino vendido por tuta e meia que mata sem remissão de pecados, que leva à loucura, algo que não tem retorno. Estou-me nas tintas para quem diz que vende o produto a "adultos, a pessoas responsáveis" e que até paga impostos e que tem as portas abertas porque a legislação assim o permite. Para o diabo que os leve com o bloom fertilizante para plantas e jardins.

Espero que esses empresários tenham consciência do inferno que criaram e espalharam. Espero que haja legislação forte que meta esta gente na ordem para que as polícias possam actuar, mandando uma meia dúzia que aí anda fertilizar o chão de uma cela.



IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
28/08/12

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