A crise bem-vinda
na teoria evolucionista
Aqueles que acreditam que um ser sobrenatural criou o universo nunca constituíram um desafio intelectual à teoria evolucionista.
Mas os criacionistas, quer sejam
fundamentalistas bíblicos ou crentes no “design inteligente”,
representam uma ameaça ao pensamento científico. Na verdade, o talento
especial traiçoeiro do criacionismo reside na sua capacidade de
reinventar a evolução à sua própria imagem, como um sistema de crenças
dogmáticas – e, portanto, a antítese da ciência.
Os criacionistas
estão certos numa coisa: ao contrário da impressão que é dada em muito o
que se escreve sobre o assunto, a teoria da evolução está em crise. Mas
isto é um desenvolvimento positivo, pois reflecte o progresso
não-linear do conhecimento científico, caracterizado por aquilo que
Thomas Kuhn descreveu no seu influente livro The Structure of Scientific Revolutions como “mudanças de paradigma”.
Durante
os últimos 70 anos, o paradigma dominante na ciência evolucionista tem
sido a chamada “nova síntese”. Amplamente divulgada nos últimos anos
pelo biólogo evolucionista de Oxford, Richard Dawkins, a nova síntese
combina a teoria de Darwin da selecção natural com a genética
mendeliana, o que explica a hereditariedade.
A actual crise na
ciência evolucionista não implica a completa rejeição deste paradigma.
Em vez disso, ela ocasiona uma reorganização progressiva, muito
importante, do conhecimento existente, sem comprometer os princípios
fundamentais da teoria evolucionista: os organismos vivos de hoje
desenvolvem-se a partir de organismos significativamente diferentes do
passado distante; os organismos diferentes podem partilhar antepassados
comuns; e a selecção natural tem desempenhado um papel crucial neste
processo.
Outras suposições estão, no entanto, sob ameaça. Por
exemplo, na representação tradicional da evolução, “árvore da vida”, os
ramos afastam-se sempre, nunca se fundem, o que implica que a linhagem
das espécies segue um caminho linear e que todas as mudanças
evolucionistas ao longo deste caminho ocorrem dentro da linhagem que
está a ser traçada. Mas um exame de genomas – particularmente dos
micróbios – mostrou que o movimento dos genes entre organismos com
relações de parentesco afastadas é um importante catalisador da mudança
evolucionista.
Além disso, a nova síntese presume que os
principais motores da evolução são pequenas mutações geradas ao acaso
dentro de uma espécie. Mas indícios recentes sugerem que as grandes
mudanças, causadas pela absorção de uma porção de material genético
estranho, podem ser significativas. Na verdade, a absorção de organismos
inteiros – tais como as duas bactérias que formaram a primeira célula
eucariótica (o tipo de célula mais complexa encontrada em animais
multicelulares) – pode gerar uma grande e crucial mudança evolucionista.
O
que desestabiliza ainda mais a teoria evolucionista é a crescente
percepção de que muitos factores, não apenas o genoma, determinam o
desenvolvimento de um organismo individual. Ironicamente, tal como a
descoberta da estrutura do DNA – inicialmente elogiada como o acto final
no triunfo da nova síntese – levou a uma melhor compreensão do
funcionamento dos genomas, também acabou por enfraquecer a crença no seu
papel único em orientar o desenvolvimento biológico. Aqueles que
durante muito tempo lamentaram a omissão do desenvolvimento a partir de
modelos evolucionistas – uma crítica antiga feita durante décadas sob a
bandeira científica da biologia evolucionista do desenvolvimento
(“evo-devo”) – juntamente com a persistência de que o desenvolvimento de
organismos se baseia numa grande variedade de recursos, têm sido
ilibados.
Recentes desenvolvimentos na biologia molecular
pregaram o último prego no caixão do determinismo genético tradicional.
Por exemplo, a epigenética – o estudo das modificações hereditárias do
genoma que não envolvem alterações do código genético – está a aumentar.
E os vários tipos de pequenas moléculas RNA são cada vez mais
reconhecidos como formadores de uma camada reguladora por cima do
genoma.
Além de enfraquecer as teorias da evolução centradas no
gene que têm dominado a consciência pública por várias décadas, estes
desenvolvimentos exigem novas estruturas filosóficas. As tradicionais
visões reducionistas da ciência, com os seus pontos de convergência nos
mecanismos “em pirâmide”, não são suficientes na busca da compreensão da
causalidade dedutiva e circular e de um mundo de processos
aninhados.Isto traz-nos de volta ao ponto por onde começámos. Repensar
radicalmente a teoria evolucionista atrai, invariavelmente, a atenção
dos criacionistas, que alegremente anunciam que se os profissionais
defensores do darwinismo não chegam a um acordo, o conceito deve ser
afastado. E, os evolucionistas, confrontados com esta reacção, tendem a
colocar as carroças em círculo e a insistir que todos estão de acordo.
Mas
nada mais demonstra tão claramente que a ciência e o criacionismo são
polos opostos do que a última suposição de que os sinais do desacordo
falharam. De facto, o desacordo – e as percepções mais profundas que
resultam dele – permite novas abordagens para a compreensão científica.
Para a ciência, ao contrário dos sistemas de crenças dogmáticas, o
desacordo deve ser incentivado.
O actual contratempo na teoria
evolucionista – e a nossa incapacidade de prever onde é que a área do
saber estará em 50 anos – são um motivo de comemoração. Devemos deixar
os criacionistas com as suas convicções ocas e encarar com felicidade as
incertezas inerentes, numa abordagem verdadeiramente empírica para
compreender o mundo.
John Dupré é professor de Filosofia da Ciência e director do ESRC Center for Genomics in Society, na Universidade de Exeter.
Tradução: Project Syndicate
IN "PÚBLICO"
12/09/12
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