24/05/2012

DIANA PIMENTEL


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 Novo mundo



Gosto de demorar-me por dentro de cidades. Gosto de ouvir as silenciosas histórias que murmuram. Gosto de sentir, pé ante pé, ruas, calçadas, travessas, escadas, varandas. Gosto de me abandonar aos acordes que nascem secretamente por dentro de mercearias, floristas, tabacarias, cafés. Gosto de aprender a toponímia como se descobre o nome de um novo amigo. Gosto de me deixar tocar pelo invisível passado que nestes lugares morou. Gosto da memória das cidades. Gosto de intuir a presença de antigos - perdidos, reencontrados, imaginários - amigos entre quem entra, sai, demora, habita, espreita ou furtivamente passa pelas ruas da cidade. Gosto de regressar, na promessa de um (outro) futuro. Há alguns dias, num café com o nome da cidade, em conversa solta como ave que sobrevoa beirais e telhados, pousaram palavras em que recordei a deriva de uma tarde de domingo no Funchal e, quase sem querer, mal sabia ler, voltei a ter bibe, estava na escola, era outra a cidade e aprendia um novo mundo.

 Naquele domingo, tinha passado a tão ondulada curva a seguir à Capela das Almas Pobres, um lugar raro quase escondido na rocha da Travessa das Capuchinhas. Contornei a rua, com uma suave inclinação. Um pouco mais acima, uma discreta porta. A tabuleta da oficina era em metal pintado de uma cor escura e mostrava, gravado, em desenho firme, um livro aberto com e um conjunto de folhas certeiramente divididas: meio livro para cada lado, em imaginadas três dimensões. No centro da tabuleta estava escrito "Novo Mundo", em maiúsculas, a toda a largura e ao alto das duas páginas centrais deste livro sem outro título (não serão todos os livros esse "novo mundo"?, perguntei-me). Sobre o livro gravado estava o desenho do globo terrestre, todos os mares e os seus continentes, e, acima dele, a acompanhar o arredondado do contorno do mundo, a palavra Tipografia

Desci três breves escadas e, apesar de ser domingo, ouviam-se, em contínuo, sonoros, ritmados, todos os maquinismos a funcionar: rolos a fazer voar papéis de várias cores para, muito devagar, pousarem num molho onde se encontravam páginas de um mundo por vir, palavras a escreverem mundos outros da vida de todos nós.

Na tipografia "Novo Mundo" revi, no pulsar das veias e nos acordes antigos do coração, um momento único da infância - estava eu na segunda classe (era assim que naquela altura se dizia...), no fim dos anos 70. Aquele dia da visita de estudo a uma tipografia de que não fixei o nome, de bibe aos quadradinhos e a alegria a transbordar de desejo do inesperado abriu-me um novo mundo. Na tipografia, um senhor muito alto e vestido com um longo avental de couro juntava, letra a letra, em filas de chumbo escurecidas de tinta, os nomes de cada um de nós. As letras estavam guardadas em gavetas de madeira muito largas, divididas por quadrados e por ordem alfabética, com cada uma das mínimas peças com que se escreve o mundo. Com as mãos grandes, o tipógrafo abria as enormes gavetas, escolhia e ajustava, lado a lado, as letras que chamavam por nós, um a um, pelo nome completo. Foi preciso ter paciência e esperar que a barra de ferro aquecesse e arrefecesse para as conseguirmos segurar. Assim estavam alinhados cada um dos tipos do nosso nome (tipo era o nome daquelas letras de chumbo, ensinou-nos o tipógrafo). Ainda hoje guardo a pesada linha com o meu enorme nome completo. Mas, sobretudo, não esqueço as mãos do tipógrafo que compõe o mundo.

Há alguns dias, no café com o nome da cidade, em silêncio perguntei-me se nomes de ruas, calçadas, travessas e letras, palavras ou livros não serão esse mundo novo que nas nossas artérias vivem, nas nossas veias se movem, na nossa pele se imprimem, na nossa memória se demoram. Como passado presente, futuro por vir, um mundo novo. 


PROFESSORA UNIVERSITÁRIA

 IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA" 
20/05/12

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