25/05/2012

ANTÓNIO PEDRO VASCONCELOS




 Novas oportunidades


Há dias, o primeiro-ministro declarou (cândida ingenuidade ou perverso cinismo?), que o desemprego era uma oportunidade para as pessoas mudarem de vida.

Ao vê-lo entregar o Prémio Leya a João Ricardo Pedro, autor do romance O Teu Rosto Será o Último, pensei que teria sido o ‘caso’ deste novel autor que lhe tinha inspirado este elevado e conspícuo pensamento. ‘Revejam-se’ – pensou Passos Coelho – ‘no exemplo deste engenheiro electrotécnico, nascido nas vésperas do 25 de Abril, que ficou desempregado e disse para os seus botões: ‘Embora escrever um romance! Ganho o Prémio Leya, empocho uns cem mil euritos e refaço a minha vida!’ E assim fez. E assim foi. Mas suspeito que João Ricardo Pedro nunca imaginou que o seu exemplo viesse a servir para justificar as cegas políticas de austeridade, o emprego galopante, as falências em cascata, o desespero dos jovens, as pessoas diariamente atiradas para a rua. E os cortes na Cultura.

 Devo dizer que Ricardo Pedro se revela um escritor prodigioso (no sentido literal do termo: um inventor de prodígios), com o único senão de o livro não atar as pontas que ele próprio desfia a cada novo capítulo (é um parti-pris), o que me faz lembrar o que Flaubert disse a um jovem escritor que lhe pediu um conselho sobre o seu primeiro romance: ‘o livro está cheio de pérolas, mas não se esqueça que não são as pérolas que fazem o colar; é o fio’! Mas não é do romance que me proponho escrever (talvez volte a ele um dia destes), nem das qualidades invulgares deste autor surpreendente, mas sim do aproveitamento que o primeiro-ministro fez deste caso singular, em que nos brindou com outra pérola: «Se noutra ocasião tive a oportunidade de dizer que o valor da Cultura não se mede pelo montante da sua conta no Orçamento do Estado, agora afirmo que os domínios do espírito e da criatividade não pertencem a ninguém, e certamente não ao Estado».

Maneira hábil de se descartar das responsabilidades da Secretaria de Estado da Cultura que, sob o pretexto de que o Estado não deve ser paternalista com os artistas, continua a não dar qualquer sinal de quando irá cumprir os compromissos com produtores e realizadores, as obrigações legais e os acordos assinados. Há uma sugestão que Passos Coelho não se atreveu a fazer, mas que eu deixo no ar: porque não aproveitamos, nós, cineastas, o facto de ter deixado de haver dinheiro para filmar, para tentarmos uma carreira de engenheiros electro-técnicos? 



 IN "SOL"
 21/05/12

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