27/04/2012

JOSCHKA FISHER


  

Valores chineses?



 Não podem restar hoje muitas dúvidas de que a República Popular da China dominará o mundo do século XXI. O rápido crescimento económico do país, o seu potencial estratégico, o imenso mercado interno, e um enorme investimento em infra-estruturas, educação e investigação e desenvolvimento, bem como um impressionante desenvolvimento militar, farão com que isso aconteça. Isto significa que, em termos políticos e económicos, estamos a entrar num século da Ásia do Leste e do Sudeste. 

 Não nos esqueçamos, o resultado para o mundo teria sido muito pior se a ascensão da China tivesse falhado. Mas com que se parecerá este mundo? Conseguimos prever o poder que moldará a sua geopolítica, mas que valores estarão na base do exercício desse poder? 

 A política oficial das “Quatro Modernizações” (industrial, agrícola, militar e científico-tecnológica) que tem sustentado a ascensão da China desde o fim da década de 1970 não tem conseguido responder a essa questão, porque a “quinta modernização” – a emergência da democracia e do primado do direito – ainda está a faltar. Na verdade, a modernização política enfrenta uma oposição enorme do Partido Comunista Chinês, que não tem interesse em entregar o monopólio do poder. Além disso, a transição para um sistema pluralista que fomente, em vez de suprimir, o conflito político, seria certamente arriscada, embora o risco cresça quanto mais persista a regra do partido único (e a corrupção endémica que a acompanha). 

 Ideologicamente, a rejeição da liderança chinesa aos direitos humanos, democracia e às normas legais de conduta é baseada na alegação de que estes valores supostamente universais são um mero pretexto para os interesses ocidentais, e que o seu repúdio deverá por isso ser encarado como uma questão de respeito próprio. A China nunca mais se submeterá militarmente ao Ocidente, portanto também não se deve submeter normativamente ao Ocidente. 

E aqui voltamos ao conceito de “valores asiáticos,” originalmente desenvolvido em Singapura e na Malásia. Mas até hoje, três décadas depois, o seu significado permanece pouco claro. Essencialmente, o conceito serviu para justificar um governo colectivista-autoritário, alinhando-o com a cultura e a tradição locais, em que a autonomia é definida em termos do outro – isto é, pela diferenciação relativamente ao Ocidente e seus valores. Portanto, “valores asiáticos” não são normas universais, mas antes uma estratégia de auto-preservação atrelada a políticas de identidade.

 Dada a história do colonialismo ocidental na Ásia, o desejo de manter uma identidade distinta é ao mesmo tempo legítimo e compreensível, como é a convicção em muitos países asiáticos – à frente dos quais a China – de que chegou o tempo de ajustar contas antigas. Mas o esforço para preservar o poder individual, a necessidade de uma identidade “asiática” distinta, e o desejo de ajustar contas históricas não resolverão a questão normativa levantada pela emergência da China como potência dominante do século. 

O modo como essa questão é respondida é crucialmente importante, porque determinará o carácter duma potência global, e portanto como se relacionará com outros países, mais fracos. Um estado torna-se uma potência mundial quando o seu significado estratégico e o seu potencial lhe dão alcance global. E, como regra, esses estados tentam a seguir salvaguardar os seus interesses impondo a sua predominância (hegemonia), que é uma receita para perigosos conflitos se baseada na coerção em vez de na cooperação. 

A aclimatação mundial a uma estrutura hegemónica global – em que as potências mundiais garantem uma ordem internacional – sobreviveu à Guerra Fria. A União Soviética não era ideologicamente antiocidental, porque o comunismo e o socialismo eram invenções ocidentais, mas era antiocidental em termos políticos. E falhou não apenas por razões económicas, mas também porque o seu comportamento interno e externo se baseava na coacção e não no consentimento. 

Por contraste, o modelo económico e político dos Estados Unidos, e do Ocidente, com os seus direitos individuais e sociedade aberta, provou ser a sua melhor arma na Guerra Fria. Os EUA prevaleceram não por causa da sua superioridade militar, mas por causa do seu poder de influência, e porque a sua hegemonia se baseava não na coacção (embora também existisse alguma), mas principalmente no consentimento. 

 Que caminho escolherá a China? Mesmo que a China não mude a sua antiga e admirável civilização, deve a sua re-emergência à sua adesão ao modelo ocidental contemporâneo de modernização – a enorme realização de Deng Xiaoping, que pôs o país no seu caminho actual há mais de três décadas. Mas a questão decisiva da modernização política permanece sem resposta.Claramente, os interesses nacionais, e por vezes o poder puro, desempenham um papel em como os EUA e outros países ocidentais aplicam valores como os direitos humanos, o primado do direito, a democracia e o pluralismo. Mas estes valores não são apenas vitrinismo ideológico para os interesses ocidentais; na verdade, não são isso a qualquer nível significativo. São realmente universais, e mais ainda numa era de globalização alargada.

 A contribuição da Ásia – e da China, em particular – para o desenvolvimento deste conjunto universal de valores ainda não é previsível, mas acontecerá seguramente se a “quinta modernização” levar à transformação política da China. O destino da China como potência mundial será determinado em grande medida pelo modo como confrontar esta questão. 


Líder do Partido Verde, foi ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha e vice-chanceler 

 Tradução (do inglês) de António Chagas/Project Syndicate 

IN "PÚBLICO" 
24/04/12 

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