06/04/2012

JOANA AMARAL DIAS



Filmar o invisível

‘Vergonha’ conta a história de um viciado em sexo, um tema de risco que Steve McQueen, o realizador de ‘Fome’, filma sem nunca cair no fácil.

Numa cena de ‘Vergonha’, o protagonista (um viciado em sexo) tem relações com uma estranha contra um muro onde a palavra "fuck" está escrita com as letras fora de ordem. Mas não se trata de nenhuma obscenidade suplementar, apenas de uma ordem. Isso mesmo, de uma obrigação com vários inconvenientes, tais como os enunciados por Chesterton que sobre o sexo dizia: o prazer é momentâneo, a posição ridícula e as despesas odiosas.

Num dos seus livros, Zizek tem um apêndice, intitulado do ‘Sublime ao Ridículo, o acto sexual no cinema’, onde levanta a questão do sexo como imperativo. O autor explica como o superego, essa estrutura psíquica habitualmente associada à lei e ordem, tem como objectivo o gozo, sendo esse o seu paradoxo. Pense-se, por exemplo, no caso do pai que prepara um serão especial para a família e diz: "É melhor que aproveitem!".

Ou como em férias, por exemplo, é fácil sentir a obrigação de relaxar. Zizek apresenta como caso paradigmático deste imperativo do prazer a situação dos japoneses que instituíram um tempo de entretenimento. Trabalham e depois têm um horário pré-definido onde têm como dever divertir-se. Claro que apenas depois desse agendamento terminar é que podem verdadeiramente gozar. Ou seja, no limite, a suposta libertação transforma-se numa prisão insuportável.

PATOLOGIA

Esta também é a história do tal anti-herói do último filme de Steve McQueen. Claro que a sua alegada patologia não deixa de ser um mal do século, onde a hiper-estimulação sexual ocorre paralelamente à dissolução dos laços afectivos, familiares, comunitários ou, noutras palavras, ao medo da intimidade. Por isso mesmo não será por acaso que o realizador escolhe filmar aquelas letras na tal parede ou que, numa outra cena não menos importante, foque um anúncio no metro que promete "Improving, non-stop", qualquer coisa como "Sempre a melhorar. Sem parar", ou seja, um slogan do progresso ilimitado, da competitividade sem freios. Daí que, supostamente, não seja necessário ter o problema do protagonista para sentir o seu isolamento ou dor.

Porém, em larga medida, o realizador tudo faz para que o espectador não empatize com o sofrimento da sua principal personagem. Além de bonito e bem sucedido, nenhuma explicação psicologista é dada para o seu comportamento, nenhuma consequência directa da sua conduta é apresentada (como ser despedido).

Esse é, de resto, um trunfo de McQueen – consegue que a plateia sinta aquilo que o protagonista sente, pouca ou nenhuma proximidade, restando apenas a angústia. Da mesma forma, o cineasta consegue separar totalmente o sexo do erotismo, consegue o explícito sem nunca ser pornográfico e, sobretudo, comunicar a miséria da alma através daquilo que, supostamente, é um prazer. Consegue filmar o superego. 



IN "CORREIO DA MANHÃ"
01/04/12

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