04/03/2012

JOSCHKA FISHER


A próxima crise de Merkel

Com a Europa atolada na crise financeira e com os seus governos nacionais a caírem ou a serem derrotados em eleições por todo o continente, a Alemanha tem parecido uma ilha de prosperidade e estabilidade. A chanceler Angela Merkel apareceu como a corporização da nova força do filho problemático da velha Europa, um país admirado por uns e odiado por outros.

Mas isso foi o mês passado. Desde então, o presidente do país, Christian Wulff, que foi eleito com o apoio de Merkel, foi forçado a demitir-se, devido a erros que cometeu enquanto ministro-presidente da Baixa Saxónia. Adequadamente, a sua queda ocorreu no auge do carnaval alemão: enquanto os católicos no Oeste e no Sul da Alemanha celebravam, os protestantes da Alemanha do Leste em Berlim consolidavam o seu domínio no poder. A Alemanha terá um pastor protestante como o seu chefe de Estado, para além de ser governada por uma filha de um pastor protestante.

Isto é dificilmente uma questão para os alemães normais, porque a religião não tem quase importância na vida pública alemã (desde que a religião em questão não seja o Islão). Mas é um tema importante para o principal partido do governo na Alemanha, a União Democrata Cristã (CDU), e ainda mais para o seu partido-irmão da Baviera, a União Social Cristã (CSU).

Ambos os partidos são sucessores do Partido católico do Centro Alemão, que lutou contra a predominância protestante na Prússia e contra o reich de Bismarck. Com o apoio das maiorias católicas na Alemanha ocidental e meridional, a CDU e a CSU foram os partidos de governo tradicionais na República Federal Alemã do pós-guerra desde os dias de Konrad Adenauer. Espera-se descontentamento visível sobre a proeminência protestante no seio de ambos os partidos.

O perigo real da actual crise presidencial e da sua solução para Merkel reside noutro lugar, nomeadamente nos cálculos políticos que fizeram de Joachim Gauck, o novo presidente alemão, um potencial candidato.

Por regra, as eleições presidenciais alemãs são ocasiões de grande tensão, porque podem constituir um indicador antecipado de novas e emergentes maiorias políticas. Adicionalmente, o chanceler não é eleito directamente e só pode ser afastado por uma moção construtiva de censura, significando que uma maioria parlamentar selecciona um novo chanceler.

Isto torna todas as maiorias contra um chanceler governante altamente dramáticas, porque reflectem o seu poder declinante. Isto é particularmente verdade se uma tal maioria for reunida contra o chanceler num assunto pessoal central, como é certamente a selecção do presidente. Foi isso que aconteceu na eleição de Gauck.

Até agora, Merkel parecia estar em terreno político sólido. É altamente respeitada internacionalmente, está no auge da sua popularidade doméstica e não tem rivais de quem tenha de se defender no seio do seu próprio partido. É verdade, o apoio popular para os seus parceiros de coligação, os Democratas Livres (FDP), caiu para 2%, mas a CDU/CSU ainda está claramente à frente dos Social-Democratas (SPD, o maior partido da oposição), e a esquerda está fragmentada em quatro partidos, dois dos quais não são material para governo.

Então, mesmo que a coligação de Merkel não funcionasse na, ou mesmo antes da próxima eleição federal, foi sempre assumido que ninguém poderia seriamente desafiar a sua chancelaria e certamente não no seio de uma “grande coligação” com o SPD. Parecia simplesmente não haver maioria contra Merkel.

Este grosseiro erro de cálculo omitiu a angústia crescente dos seus maltratados parceiros de coligação, o FDP, sobre as suas hipóteses de sobrevivência. No curto espaço de tempo desde a decisão de elevar Gauck à presidência, o granito sob os pés de Merkel tornou-se areia movediça política. O que aconteceu?

Muito simplesmente, o FDP enterrou-a e mudou de opinião num tema central, alinhando-se com os principais partidos da oposição no apoio a Gauck. Repentinamente, acenou a possibilidade de uma nova maioria e Merkel foi confrontada com a escolha de ceder ou acabar com a coligação. Rangeu os dentes e cedeu. Mas a ruptura no seio da sua coligação já não pode ser disfarçada.

A candidatura de Gauck foi forçada por uma maioria SPD/Verdes/FDP, que emergiu de interesses políticos comuns. Mas isto só torna o assunto mais perigoso para Merkel, porque tais episódios são o que normalmente costuma marcar o início do fim para os chanceleres alemães.A confiança entre os partidos governantes desapareceu. As eleições estaduais desta Primavera mostrarão se a manobra do FDP levantará o partido acima da margem eleitoral de 5% necessária para permanecer no Parlamento, ou se o medo da morte certa os levou ao suicídio político. Se o FDP sobreviver e uma coligação de centro-direita não conseguir uma maioria (o que é provável), o partido procurará uma aliança com o SPD e os Verdes, custando a chancelaria a Merkel em 2013.

Isto significa que a CDU/CSU não mostrará mais consideração pelo FDP. Se Merkel quer proteger a sua chancelaria, a sua única opção depois da eleição geral de 2013 é uma grande coligação com o SPD, e, para conseguir a melhor parte desse acordo, precisa de todos os votos que conseguir no campo do centro-direita.

Para Merkel, a situação será muito séria daqui para a frente. Ela pode ter deixado a crise europeia longe da porta da Alemanha, mas isso não significa que a Alemanha não entre proximamente numa crise só sua.


Líder do Partido Verde, foi ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha e vice-chanceler


Tradução de António Chagas/Project Syndicate

IN "PÚBLICO"
02/03/12

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