08/02/2012

NAOMI WOLF


Um herói dos 
   filmes iraquianos 
       nos Estados Unidos


Um dos únicos cineastas do Iraque no activo, Oday Rasheed – cuja brilhante longa-metragem de 2005, intitulada Underexposure, acompanhou um grupo de personagens através de Bagdad após a invasão liderada pelos Estados Unidos em 2003, e cujo novo filme intitulado Qarantina se encontra agora em estreia – está em Manhattan.

Os ambientes glamorosos em que ele apresenta agora o Qarantina – uma exibição no Museu de Arte Moderna, por exemplo e em casas particulares de realizadores e estrelas norte-americanos – não poderiam estar mais afastados do contexto crivado de violência do seu quotidiano.

Em Bagdad, Rasheed ganhou fama – e notoriedade – ao procurar inspirar uma nova geração de cineastas iraquianos e de outros jovens artistas. Qarantina é uma de apenas quatro longas-metragens realizadas no Iraque nos últimos 12 anos. Membro de um colectivo chamado Najee [Sobreviventes], Rasheed faz parte da vanguarda de artistas, escritores e cineastas mais jovens cujo trabalho testemunha o seu empenho para com a arte em plena crise.

É surpreendente vê-lo entrar numa sala de Nova Iorque: a sua atitude é calma e digna. Envolve-o um certo ar de solenidade. Sofreu traumas inimagináveis, e permanece exposto a esses traumas. "Dos sete melhores amigos que eu tinha na infância", conta-me ele, "cinco estão mortos". Um deles foi recentemente assassinado com um tiro na cabeça enquanto estava na cozinha de sua casa.

Há dias em que, diz ele, “acordamos com o rádio ou a televisão a noticiar cinco atentados com carros armadilhados”, conduzindo-nos a uma espécie de claustrofobia – que é parte do tema do seu filme. Referi-lhe que podia estar a sofrer de stress pós-traumático, devido à perda do seu amigo. "Já passei por isso", respondeu ele, sorrindo.

Rasheed está apenas a chegar aos 40 anos e a sua vida reflecte os dramas do seu país: fazendo parte da geração conhecida como "geração perdida" de artistas e intelectuais iraquianos, ele e os seus amigos ficaram isolados durante anos, por causa de sanções. Mas ele também descreve os anos de Saddam como uma época em que, apesar de não haver liberdade, os intelectuais tinham margem de manobra, desde que soubessem "quais os temas que deveriam deixar de fora".

Ele viveu a invasão liderada pelos EUA durante um período formativo na sua vida criativa – escrevia para a televisão e estava ligado à crítica e comentário de cinema, ao mesmo tempo que tentava sobreviver aos bombardeamentos, aos saques e ao caos. Mas também teve de manter a sua integridade intelectual.

Quando os militares dos EUA quiseram mostrar que havia um cineasta a trabalhar no Iraque ocupado, Rasheed foi arrastado para um jantar formal num dos antigos palácios de Saddam na Zona Verde, com a participação de altos funcionários dos Estados Unidos e militares – um daqueles convites que não se gosta de receber e que não se consegue recusar.

Agora Rasheed reflecte na viragem do seu país para o extremismo religioso: ele descreve um Iraque, antes da invasão, no qual as mulheres eram profissionais e bastante emancipadas, ao passo que agora usam véus, sob pressão "por uma vida pacífica". Uma jovem actriz iraquiana amiga sua, Zahra Zubaidi, teve de fugir do Médio Oriente depois de ter desempenhado o papel de vítima de estupro no filme de Brian de Palma intitulado Redacted; estando, desde essa altura, emigrada em Nova Iorque.

Hoje em dia, os intelectuais no Iraque estão predestinados a ser continuamente intimidados por extremistas religiosos e facções políticas. E ainda assim Rasheed recusa-se a ser discreto: "Tudo aquilo em que acredito, acredito mesmo", diz ele. "Eu não posso mentir ou deixar de responder às perguntas".

A razão principal da estadia de Rasheed em Nova Iorque tem a ver com o facto de ser o local do seu próximo filme, cuja temática "trata da influência dos contratantes norte-americanos após a invasão do Iraque, não apenas nas vidas dos iraquianos, mas também na vida dos EUA". Quanto ao Iraque de hoje, Rasheed afirma: "Eu não penso que os americanos sejam indiferentes ao que aconteceu e ao que está a acontecer, mas os pormenores quotidianos de actos de crueldade não lhes dão tempo nem energia para pensar em questões maiores".

De facto, Rasheed salienta que a cada exibição do seu filme nos EUA, o público precisa desculpar-se antes de começar a dirigir-se a ele como um cineasta e não como um representante de seu país. "Pessoalmente, não peço nada, estou aqui para esclarecer algumas confusões através do cinema".O Iraque, devastado pela guerra, e agora abalado diariamente pela violência, é conhecido como o país árabe com maior vocação intelectual. Como afirmam muitas vezes os iraquianos e outros intelectuais muçulmanos na região: "Os livros são escritos no Egipto, impressos no Líbano e lidos no Iraque”.

Aqui fica a esperança de que Rasheed e os seus colegas continuem a construir uma cultura iraquiana que seja vibrante e livre; e aqui fica a esperança de que a relação dos EUA e do público internacional com Rasheed deixe de ser uma relação de expiação e passe a pautar-se pelo envolvimento com o seu trabalho. A dedicação de Rasheed pelo direito à sua verdade, que é a tarefa do artista, não deixa de ser notável, dado que está a trabalhar num ambiente em que parte do processo criativo envolve tentar permanecer vivo.

Activista política, crítica social e defensora destacada da “terceira via” no feminismo

IN "PÚBLICO"
06/02/12

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