08/01/2012

NICOLAU DO VALE PAIS



O mérito e as mercearias de bairro

 Uma economia minúscula como a portuguesa tem "monstros" no negócio da distribuição como a Jerónimo Martins e o seu Pingo Doce, ou a Sonae e o seu Continente: é inusitado, concordemos, e só é possível em países onde o que se paga a um trabalhador seja da ordem do que por cá se vê; mas a coisa salta para o território do imberbe e do incrível quando se pede um boicote ao dito Pingo Doce devido às recentes decisões estratégicas da família Soares dos Santos. A questão patriótica, então, é absurda; "distribuição means business", comércio, intermediação, vender mais caro do que se compra, e "o país" não é para aqui chamado; se idolatrámos homens de negócios à espera do bem comum e da felicidade lusitana, então o nosso problema é muito mais grave do que os ingénuos boicotes ao Pingo Doce poderiam já de si sugerir; afinal, as autarquias e os nossos modelos de cidade - onde o carro, transporte dispendioso feito popular, motivo de fútil orgulho individualista - não são efectivos responsáveis pela destruição sistemática do tecido do comércio tradicional, mercearias de bairro incluídas? Que os tubarões do negócio se "financeirizem" e expatriem em nome do lucro, é a normal vulgaridade que se pode esperar do "capital", tal como de um extremista empedernido só se espera o protesto auto-reprimido. Grave, isso sim, é que a política lhes tenha seguido o hipócrita rasto; nós não votamos para eleger o conselho de administração da Jerónimo Martins, votamos para eleger Governo, autarquias e Presidente da República. Que ideias têm estes, ao nível do investimento e estímulo de um modelo económico sustentável, eficaz e de proximidade, além de umas medidas avulsas para "entreter"? A cada problema, a sua sede de responsabilidade: estes são dias de alguma irónica saudade da lucidez bárbara da Guerra Fria.

Anticapital, pró-capital, olho por olho, dente por dente, "todos cegos", como disse Ghandi, um líder político formado em Direito, aguerrido porque visionário, tantas vezes confundido com um "manifestante" (foi esse "o erro" do Império Britânico). Os últimos anos e o exacerbar frívolo do conflito ideológico têm produzido nas pessoas uma insegurança tal, que a descrença nos pôs a caminho de nos paralisarmos. O que se pretende não é nenhuma utopia de propaganda igualitária, mas a elementar lealdade entre governantes e governados: de ambos os lados do espectro político, por um processo de representatividade e de responsabilização a que chamamos Democracia, tanto à Esquerda como à Direita, justiça na igualdade de oportunidades e deveres, e uma economia dinâmica e próspera que com isso beneficie; uma lógica de mérito que sublime o sistema no que ele possa ter de melhor. Concorrência leal, portanto, seja entre o Pingo Doce e o sr. Zé da Mercearia, ou entre pares da mesma "empreitada", pública ou privada - enfim, mais Política. É tragicamente lógico que quem tenha abdicado de si próprio - como a nossa classe político-partidária na sua maioria - e das suas convicções para poder encaixar numa matriz, numa máquina partidária de compromisso velado desde tenra idade, não tenha capacidade de entender esta lógica. A deslealdade só dói a quem está desprotegido; o fomento do mérito é um bem precioso, adubo da Justiça. Seria bem mais importante apontar baterias para as causas do pandemónio, do que divagar no pessimismo intelectual tão em voga que, tal como o populismo demagógico reaccionário a autoritário, só serve para apontar culpados, sem iluminar soluções.

Ou será que é mais uma questão adiada, decretada pelos media como "impopular", por ser também uma questão de Cultura?


IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
06/01/12

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