Mudar de vida
À meia-noite de cada novo ano ganhamos coragem para fazer escolhas – embora cada vez com menos esperança de conseguir levá-las até ao fim.
Os que amávamos e desapareceram recordam-nos a futilidade dos nossos propósitos e ambições. Invejamos a capacidade de deslumbramento das crianças, qualidade que perdemos porque preferimos o medo à dor. Não há felicidade sem risco, sem mágoa e decepção. Apostar por princípio na decepção evita o dilaceramento – mas também a alegria, o puro prazer de viver.
Há métodos para prevenir a desilusão.
O primeiro é acreditar no valor das palavras e no que cada pessoa nos diz de si mesma: se alguém nos diz que é egoísta, comodista, que não consegue controlar a violência ou que não nos ama, devemos confiar na verdade dessas palavras.
Se as mulheres portuguesas ouvissem com atenção o que dizem os homens e agissem em conformidade, a realidade da violência doméstica seria muito menos trágica.
No ano que agora termina, mais de 20 mulheres morreram às mãos dos homens que amaram. E são incontáveis as que sobrevivem afundadas em pavor e maus-tratos.
O ‘castigo’ (da privação de comida ao isolamento ou à ‘pausa’ pretensamente reparadora) é também um abuso, e sério: milhares de mulheres vivem submersas em sentimentos de culpa porque os homens que amam as convencem de que cometeram ‘erros graves’ – que, por mais amor e arrependimento que demonstrem, nunca conseguem ‘corrigir’.
A SEGUNDA parte deste método consiste em não acreditar no que os outros nos dizem sobre nós mesmos, sob pena de substituirmos os nossos sonhos e expectativas pelos alheios.
Quando alguém nos disser «devias fazer isto ou aquilo», o que devemos de imediato fazer é perguntar: «Porquê? Quem beneficia desse acto? O que é que eu aprendo/ gozo/ganho/ com isso?»
Este método aplica-se à micro-gestão do nosso quotidiano como à macro-reflexão sobre o país.
Por exemplo: quando vejo os cartazes que clamam ‘Todos temos que fazer a nossa parte’, em nada me sinto convocada por eles – pela simples razão de que estou consciente de que tenho feito ‘a minha parte’ o melhor que posso e sei ao longo de toda a minha vida.
Vivi sempre e só do meu trabalho, ao qual dou o melhor da minha energia, pago impostos, nunca comprei nada que não pudesse pagar, procuro tratar os outros com gentileza e urbanidade. E, como eu, há milhões de portugueses.
Por outro lado, todos os dias tomo conhecimento de calamitosos erros de gestão da coisa pública: do caso Parque Mayer (mais de dois milhões de euros pagos por uma maquete ao arquitecto Gehry por um projecto que nunca foi feito), aos casos do Pavilhão de Portugal, dos terrenos da defunta Feira Popular ou da RTP, sucedem-se diariamente, desde há anos, as revelações sobre milhões e milhões desperdiçados.
AGORA soube-se que a dívida do Estabelecimento Prisional de Lisboa, vendido em 2006 porque se iria construir uma nova prisão – que nunca foi feita –, ascende aos 10 milhões de euros.
Espantosa a leviandade com que se desperdiçam dinheiros públicos – e a inimputabilidade dos responsáveis.
Por isso, sugiro que se anuncie: ‘O Governo fará a sua parte’. E que o primeiro-ministro explique em que consistirá exactamente a «democratização da economia» prometida na sua mensagem de Natal.
A única democratização a que até agora temos assistido é a da pobreza – com muitas pequenas empresas a abrirem falência, porque não são salvas pelo Estado, ao contrário do que acontece com a banca.
Os ricos continuam ricos, e a única solução que se aponta para a ex-classe média é a emigração. Passos Coelho pede «confiança». Mas confiar em quê, em quem, como e porquê?
IN "SOL"
02/01/12
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