Cegos, surdos e... estúpidos
‘É a economia, estúpido!’, como pretendia a doutrina Clinton nos anos 1990 ou ‘É a política, estúpido!’, como agora se proclama um pouco por toda a parte? Perante a questão, pode propor-se uma resposta também em tom de slogan, nestes tempos em que os slogans triunfam nas mais variadas latitudes: ‘São ambas as coisas, estúpidos!’.
É a economia porque é a política e vice-versa, uma vez que uma coisa não é concebível sem a outra. A chave do problema reside num divórcio trágico entre essas duas dimensões: a regressão da instância económica ao estado selvagem e a impotência (a cegueira, a surdez, a falta de lucidez e vontade) da política.
Talvez seja por isso que Merkel e Sarkozy recusaram incluir na agenda da cimeira franco-alemã desta semana a criação dos eurobonds, ao mesmo tempo que eram conhecidos os resultados deprimentes do último semestre europeu e se confirmava a estagnação da Alemanha.
As coisas irão mesmo piorar, como advertia há dias Joseph Stiglitz – e todos já interiorizámos em Portugal. As actuais políticas de austeridade, lembra também Stiglitz, só podem agravar os problemas orçamentais da Europa, e até o FMI acaba de descobrir a pólvora, pedindo aos países mais avançados para não bloquearem o crescimento. Afinal, o que é que andou a fazer a troika?
A ESTUPIDEZ política constitui um ingrediente explosivo do desastre económico-social e da crise civilizacional que tendem a agravar-se nos nossos dias – e de que um dos exemplos mais recentes foram os motins urbanos em Inglaterra.
É uma espécie de epidemia com efeito de contágio global, acompanhando as derivas dos mercados financeiros e as violentas assimetrias entre o acelerado declínio económico do Ocidente e a irrupção impetuosa do Oriente ou dos principais países emergentes, os BRIC.
Se os líderes ocidentais continuam a não encontrar saídas para a recessão, a nova superpotência em ascensão virulenta, a China, vê-se também a braços com um mal-estar social que o regime totalitário pós-maoista se mostra cada vez mais incapaz de enquadrar.
Lançada na vertigem imparável do crescimento a todo o custo, que tem provocado uma espiral de abusos, atrocidades e acidentes trágicos, a China já não é, porém, a sociedade silenciada e submissa depois do massacre de Tiananmen. «Realmente, não entendo o que o Governo pensa que pode esconder» – dizia uma mensagem captada pela Reuters numa rede social chinesa. De facto, a ocultação da realidade suscita um efeito de boomerang: acaba sempre por atingir quem pretende impô-la aos outros. A cegueira e a surdez políticas são indissociáveis da estupidez.
VIVEMOS numa época em que se multiplicam, a um ritmo alucinante, fenómenos que quase ninguém foi capaz de prever, desde as ‘primaveras árabes’ – e as situações mais dramáticas delas decorrentes, como na Líbia e na Síria, hoje literalmente a ferro-e-fogo – até aos movimentos dos ‘indignados’ que se propagaram ao coração de Israel. Aí, apesar de invejáveis índices de crescimento económico, assiste-se pela primeira vez a grandes manifestações populares contra o esvaziamento do Estado social hebraico.
É uma realidade de algum modo simétrica daquela que, também inesperadamente, vimos reflectida na insurreição estudantil no Chile, um dos países economicamente mais prósperos do continente sul-americano e cujo Presidente parecia gozar, até há bem pouco tempo, de uma confortável popularidade.
EM DEMOCRACIAS como a Inglaterra, o Chile e Israel, ou em regimes despóticos como a China e os Estados do Médio Oriente muçulmano, os governos foram apanhados de surpresa pelos acontecimentos – tal como sucedeu à maioria dos responsáveis políticos, experts e outros observadores perante o crash financeiro de 2008 e a sua (embora mais do que inevitável) réplica em 2011.
Haverá quem argumente que estas coincidências ou sequências se devem, em larga medida, a uma conjugação de causas improváveis e imprevisíveis – nomeadamente, no caso das revoltas árabes, ao prodigioso surto de difusão dos novos meios electrónicos de comunicação. Mas a verdadeira explicação tem de ser encontrada na indisponibilidade das elites políticas, intelectuais ou mediáticas para detectarem os sinais profundos das crises e os barris de pólvora à espera de um fósforo para explodir. Quem anda atrás dos acontecimentos, acaba por tornar-se refém deles.
Veja-se o caso dos motins em Inglaterra. Se, como afirmou a ministra do Interior, Theresa May, «não há desculpa para o vandalismo» – e não há, de facto –, nem por isso se devem escamotear as raízes e o caldo de cultura que favoreceram a sua irrupção. Se o primeiro-ministro Cameron classifica os assaltos e roubos urbanos de «pura criminalidade», então como pode falar ao mesmo tempo de «sociedade desfeita» (para a qual o Governo britânico pretende encontrar remédios miraculosos, insistindo no velho slogan da «Grande Sociedade» que o Presidente John- son lançou, há longas décadas, nos Estados Unidos)? «Explicar não é desculpar» – replicou o líder trabalhista, Ed Miliband. «Mas recusar explicar é proporcionar a repetição».
SALVAGUARDANDO o contexto, a frase de Miliband poderia ter um efeito preventivo em relação a Portugal. Como já se percebeu, Passos Coelho teme os efeitos de contágio e advoga o diálogo social para evitar conflitos nefastos. Mas, porventura com excepção do ministro da Educação, as indicações mais concretas até agora dadas pelo Governo limitam-se a uma política do facto consumado – cortes salariais e agravamento brutal do custo de vida – ou ao anúncio precipitado de medidas emblemáticas que, como a TSU e a privatização da RTP, entram depois no limbo das comissões de estudo.
Como diria Stiglitz – e Passos Coelho confirma – só sabemos ao certo que o pior ainda está para vir. O que talvez sirva para consolar o nosso suposto masoquismo…
IN "SOL"
22/08/11
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