10/11/2011

INÊS PEDROSA



Austeridade e violência

Portugal, país de barbas longas e verdes, é um monumento de mortos. Se cada um dos nossos mortos for um degrau de uma escada até ao céu, o sótão de Portugal fica na estratosfera, ou no Paraíso, consoante as crenças.

Não sei se é o peso da estratosfera que perturba a cabeça dos nossos políticos – que não acreditam no Paraíso, isso é nítido nos seus discursos. Pensarão, isso sim, que podem criá-lo – e pensam que antes deles nunca se criou nada.

Portugal não aguenta a desmemória; o ar é denso de mortos e fantasmas, que são os mortos que não deixamos morrer, ou seja, com os quais não aprendemos a viver.

José Sócrates decretou o seu desaparecimento político e cumpriu-o: saiu do país, foi para Paris – mas esta semana alguém o quis ressuscitar à força, imputando-lhe pressões sobre os deputados do seu partido para que não aprovassem o Orçamento do Estado.

Temo que estas insinuações, prontamente desmentidas, tenham origem no seu próprio partido, que tem tido muita dificuldade em mostrar-se capaz de cumprir o papel de líder da Oposição. Se os deputados do Partido Socialista não tiverem a coragem de votar contra este Orçamento, essas dúvidas crescerão. Responsabilidade não é dizer que sim a tudo – pelo contrário.

As medidas ditas de austeridade excedem em muito o que ficara negociado no acordo com a troika – e esse excesso, como múltiplas e insuspeitas vozes vão sublinhando, põe em risco a independência do próprio país.

Na fúria de mostrar serviço, esta nova geração de políticos, no PSD, no CDS (contrariadamente, ao que se percebe) e no PS (acriticamente, ao que se percebe), arrisca-se a deitar fora o bebé com a água do banho.

Ora o bebé é um velho de barbas verdes – um país que já viveu muito e passou por muitas crises, mas nunca até hoje havia sido violentado naquilo que de mais essencial e sublime possui, que é a esperança.

Até Cavaco Silva já o disse, por outras palavras – e Cavaco pode ser acusado de muitas coisas, mas nunca de não entender que o país necessita de austeridade.

Austeridade não é violência – é urgente que se compreenda a diferença entre estes dois modos de agir.

A notícia de que as pessoas serão multadas de cada vez que não pedirem uma factura configuraria um acto de violência se não fosse simplesmente ridícula.

Como vai o governo saber quantas vezes um cidadão vai ao barbeiro, ou almoça fora, ou chama um canalizador para consertar qualquer coisa na sua casa?

Vão pôr um espião atrás de cada português? Isso nem o doutor Salazar conseguiu – e teve pelo menos a esperteza de nem sequer tentar. Porque a tentativa, por ridícula que seja, cria raiva – e a raiva não é um suplemento alimentar adequado a um povo em processo de extirpação do básico.

Convocou-se o papão Sócrates na mesma semana em que o ministro dos Negócios Estrangeiros foi à Venezuela vender mais computadores Magalhães e estreitar as relações comerciais com o regime de Chávez, o que não deixa de ser poético. É necessário devolver a esperança a um país que através dela ampliou o mundo. O sucesso da política reside na negociação – não na vassalagem pura e dura aos défices.

No dia dos mortos, o Centro Cultural de Belém juntou mais de duzentas pessoas, uma tarde inteira, para ouvir ler textos de um escritor italiano que se fez também português por amor. Disse Antonio Tabucchi: «a adopção de uma língua não se faz por acordo ortográfico, mas por acordo espiritual». A política deve ser o espírito de um país – neste momento, a política não existe, e as barbas de Portugal tornam-se cinzentas, pobres como nunca foram.


IN "SOL"
08/11/11

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