23/10/2011

RAUL GUICHARD



O ESBULHO

No céu cinzento
Sob o astro mudo
Batendo as asas
Pela noite calada
Vem em bandos
Com pés veludo
Chupar o sangue
Fresco da manada
[…]
Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada

José Afonso


Foi finalmente entregue o orçamento do Estado para 2012. Como já tinha sido anunciado pela voz (diamantina, para alguns) de Passo Coelho, avulta aí a eliminação dos subsídios de natal e férias para os funcionários públicos e para as pensões acima de mil euros até final de 2013.
Antes de tudo, essa medida concretiza uma embustice política: o primeiro ministro tinha peremptoriamente afirmado, ainda em Abril, que não cortaria o subsídio de Natal, estar tal possibilidade fora de cogitação; e já na altura conhecia, ou não podia desconhecer, o que vai dar ao mesmo, os termos gerais da situação do País, apurada pormenorizadamente pela troika (exceptue-se porventura o caso da Madeira).
Mas, sobretudo, a medida mostra-se brutal, inequitativa, contrapro-ducente e desprovida de racionalidade económica. E, porventura, inconsti-tucional.
Brutal, porque culmina – só por si representa 15 % – a subtracção de cerca de 30 % do rendimento aos funcionários públicos! Se o primeiro-ministro não sabe o que isso representa, pergunte ao comum cidadão. Por exemplo, como sobrevive quem antes ganhava 1500 euros e hoje ganha 1150…
Inequitativa, porque faz recair arbitrariamente sobre um grupo uma enormíssima parcela dos sacrifícios. Em que são os funcionários públicos e os pensionistas mais responsáveis pela crise? É sofisma a comparação ensaiada, aliás sem convicção, entre os rendimentos dos funcionários públi-cos (supostamente mais elevados) e os dos demais trabalhadores. Haveria, desde logo, que tomar em conta as qualificações dos vários grupos. E vale tal comparação para os pensionistas? É simples estultícia pretender, como também o fez o primeiro-ministro na sua titubeante explicação, que se uma medida equivalente abrangesse os demais trabalhadores por conta de outrem seria a entidade patronal a poupar tais montantes e não o Estado a recebê-los. Demais, até o governo consegue entender que em termos práti-cos e económicos, o não pagar os subsídios de Natal e férias equivale a um imposto. Mas, provavelmente, quer poder manter que está a reduzir na despesa e não a aumentar a carga fiscal. Por outro lado, subsiste o obstina-do e escandaloso tratamento de favor concedido aos rendimentos de capital e o não agravamento da tributação do património. E seria também simpáti-co que nos esclarecessem se os ordenados dos políticos vão igualmente ser afectados…
Contraproducente são ainda as medidas escolhidas, pois agravam superlativamente a recessão e a crise em que nos encontramos. Despeja-se o bebé com a água do banho. Mata-se o doente com a cura. O governo desatou a correr amok, pensado que se encerrar Portugal o défice deixa de existir. Na verdade, a recessão assim agravada vai inexoravelmente reduzir os impostos cobrados, aumentar o desemprego e implicar, sem qualquer dúvida, novos 'cortes', Quando não restar pedra sobre pedra, o governo, saciado na sua Húbris, ensaiará a retoma da economia! E como se podem omitir quaisquer estímulos e incentivos relevantes para o relançamento da economia e para o empenho individual nessa tarefa? Como não se aproveita para corrigir, em vez de agravar, as desigualdades mais gritantes e persis-tentes?
Já se percebeu que o governo adoptou como máxima do seu discurso aquilo que Cujácio verberava nos bartolistas: verbosi in re facili, in difficili muti, in angusta diffusi (verbosos nas questões fáceis, silentes nas difíceis, difusos nas questões estreitas ou de escassa importância). Mas decisões transcendentes do género das adoptadas hão-de ser, em democracia, demorada e convenientemente explicadas, não sendo tolerável que se fique pela vaga invocação de um putativo desvio, de uma eventual péssima exe-cução orçamental. Digam-nos exactamente do que se trata, em quanto importa e quais as suas causas – com algum esforço seremos capazes de entender, formar um juízo próprio e atribuir responsabilidades. Tem mesmo razão Louça quando semeia a dúvida, desvelando o segredo mantido na Giftschrank¬¬ do governo, de que o nosso dinheiro se destina em boa parte aos bancos, com quem aquele já se conluiou?
E não prometeu o primeiro-ministro não recorrer, para se indulgen-ciar, à ladainha das culpas de Sócrates (litanias que outros dentro do PSD recitam com mais fervor, transformado afinal Sócrates na sua Nêmesis)? É certo que a sua campanha pela criminalização dos desmandos dos políticos esmoreceu, por certo por se ter lembrado do elementar, mas fundamental, princípio de que qualquer lei responsabilizando ou agravando a responsabi-lidade criminal, nomeadamente dos políticos (seja até por incompetência), só se aplica a factos futuros (eventualmente do actual primeiro-ministro).
Por fim, a medida em causa é provavelmente inconstitucional. Com efeito, parece violar o princípio da igualdade, revela-se arbitrária e despro-porcionada e, tal como foi anunciada, revestirá carácter permanente ou duradouro. Seguramente, mais do que jurídica a questão é política. Mas se se ler o Acórdão n.º 396/2011 do Tribunal Constitucional (disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110396.html), logo se dá conta que os argumentos aí ponderados, embora finalmente rejeitados, que faziam duvidar da compatibilidade com a Constituição e seus princípios das normas, reduzindo as remunerações dos funcionários públicos, da Lei do Orçamento de Estado para 2011, revestem agora mais força (veja se além disso as três declarações de votos que acompanham o acórdão).
Resta o argumento de que não havia alternativa. Em todo o caso, a ruína a prazo e imposta do exterior parece melhor que o descalabro imedia-to e anunciado e provocado do interior. Porque não pegou o primei-ro ministro na sua pessoa e foi conversar com a troika? Entendeu que era demasiado cedo. Mas corre o grande risco de daqui a um ano tudo isso se mostrar vão ou inviável.
Depois, não é simplesmente verdade que o pretendido resultado nas contas públicas não pudesse ser obtido por outros meios. Isso já foi sugeri-do e mostrado por outros. A quem nos governa pede-se responsabilidade e imaginação política e social, sob pena de se confirmar o que muitos já sus-peitam: a sua boçal inutilidade. E se o PS não tiver o assomo mínimo de coragem para votar contra este orçamento, a que a assinatura do plano com a troika não o obriga, então simplesmente deve encerrar (se não defi-nitivamente, pelo menos para obras na sua direcção). Grande esperança não será de depositar no presidente da república, mesmo que recentemente desperto, nas palavras, da letargia (selectiva, é certo) a que nos habituou.
Os portugueses tiveram bom fundamento para despedir José Sócra-tes ao fim de 6 anos de governação. Mal terminado o período experimental de Passo Coelho, as desleais, desaustinadas e danosas decisões do seu governo já comprometem a subsistência da relação de confiança com o País. Só que, no caso, de nada nos vale existir justa causa para resolver o contrato político que a ele nos ata…

Prof. do Ensino Politécnico e Universitário


IN "O PRIMEIRO DE JANEIRO"
19/10/11

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