29/09/2011

MANUELA ARCANJO


A actividade financeira oculta


De entre os inúmeros temas merecedores de comentário, o caso das finanças públicas da Região Autónoma da Madeira (RAM)
De entre os inúmeros temas merecedores de comentário, o caso das finanças públicas da Região Autónoma da Madeira (RAM); da figura única, num sentido negativo, de Alberto João Jardim (AJJ); e de algumas reacções subsequentes parecem incontornáveis.

Comecemos por duas questões de enquadramento. Segundo a Constituição da República Portuguesa (Artigo 164.º, alínea r), a Administração Regional (e a Local) gozam de independência orçamental. Em conformidade, as sucessivas leis de enquadramento orçamental - lei de valor reforçado - contemplam o mesmo princípio que se traduz pela elaboração dos respectivos orçamentos de forma autónoma e aprovação pelas entidades competentes ao nível regional (ou local).

A segunda questão refere-se ao conceito de saldo orçamental usado para medição de um dos critérios do Pacto de Estabilidade e Crescimento e, agora, objecto de maior vigilância devido ao resgate financeiro de Portugal. Com efeito, o saldo (em termos reais, défice) refere-se a receitas e despesas efectivas (sem as operações de activos e passivos financeiros) dos quatro subsectores da Administração Pública, a saber: os serviços integrados e os serviços e fundos autónomos (que correspondem aos ministérios), a Segurança Social e a administração regional e local. No entanto, e ainda segundo a CRP, o Orçamento do Estado não integra os orçamentos da ARL mas apenas as transferências efectuadas no âmbito da Lei das Finanças Regionais (e das Finanças Locais).

Juntemos agora as duas questões anteriores: o Governo da República representa e assume compromissos pelo todo nacional em matéria de redução do défice público e da dívida pública (em percentagem do PIB). Logo, a independência orçamental teria como contrapartida - tal como estabelecido na lei orçamental - o dever de informação sobre os orçamentos regionais (e locais) aprovados e sua execução, bem como o cumprimento dos limites ao endividamento estabelecidos em cada Orçamento do Estado. Se assim não fosse, os sucessivos ministros das Finanças (MF) estariam num "exercício de adivinhação" sobre as finanças regionais (e locais) e, nos períodos de maior esforço de consolidação, com insónias permanentes com receio do aparecimento de despesa realizada sem cobertura orçamental e/ou de dívida contraída para alem do limite legal.

Agora, uma pergunta simples: quantos MF não tiveram surpresas desagradáveis desde a segunda metade dos anos 90? Nenhum. Quantas vezes foram accionados os mecanismos de penalização para os incumprimentos? Nenhuma.

Centrando agora a análise na RAM e em AJJ: a realização de despesa sem cobertura orçamental (ou com recuso a empréstimo contraído por uma empresa pública regional) e a violação do limite de endividamento, sem o cumprimento do dever de informação, não são, infelizmente, uma novidade. Verdadeiramente novo foi o acto de confissão (e posterior arrependimento do mesmo) por parte de AJJ: ocultou para não ser penalizado por incumprimento. Mais, já fez saber que não tenciona cumprir na RAM os compromissos assumidos pelo Governo da República no Memorando de Entendimento.

Dados os episódios dos últimos anos que envolveram algumas câmaras municipais, não poderemos esperar algo de diferente neste caso. Mas, do ponto de vista político (afinal, existe um Governo da República num Estado unitário) e da violação financeira, terá de haver penalização.

A terminar, duas notas. Primeiro, e sem qualquer tolerância para com o comportamento reiterado de AJJ, convém ter memória: quantas surpresas temos tido ao nível de derrapagens orçamentais, do aumento não explicado da dívida pública, da dimensão gigantesca (ainda não conhecida) do universo das empresas municipais, da contratação de funcionários pelos municípios com violação da regra nacional de congelamento de admissões? Pois, as omissões fazem parte das nossas finanças públicas. Segundo, as reacções do Tribunal de Contas e do Banco de Portugal: o primeiro tem vindo a avisar, o segundo não poderia saber. Nada a comentar, a não ser o facto destas duas entidades apoiarem a criação do novo Conselho de Finanças Públicas (gerador de mais despesa, pois então) que estará dependente na sua capacidade de análise da veracidade da informação financeira divulgada. Temos legislação e entidades de supervisão mas algo faz parte da nossa (in)cultura financeira: a falta de rigor e, em alguns casos, de seriedade.


Professora universitária (ISEG), investigadora e economista.

IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
26/09/11

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