Monstros domésticos
Alguns casos recentes de violência doméstica e crimes sexuais têm revelado pessoas completamente dúplices na sociedade portuguesa. Pessoas bem integradas no trabalho, sociáveis, cordatas e consideradas são, no segredo dos seus lares, verdadeiros criminosos, exibindo uma espécie de dupla personalidade, como a personagem da novela de Robert Louis Stevenson.
Na célebre obra de Stevenson – ‘O médico e o monstro’ –, o Dr. Jekyll é um médico de renome, devotado à investigação científica, que, na sequência de uma experiência involuntária, se transfigura num indivíduo desprezível, capaz de praticar os crimes mais hediondos – o Sr. Hyde. Ambos se digladiam, quotidianamente, como verso e reverso da mesma pessoa física.
Este fenómeno, estudado pela Psiquiatria, mostra que a mente humana é capaz de se dividir em compartimentos, por adaptação ao meio. Assim, ao lado de uma face "pública", mais visível e conhecida, a mente humana consegue manter um espaço selvagem, comandado pelos impulsos inconscientes e legitimado pelo desejo ou por qualquer necessidade íntima.
A duplicidade manifesta-se, sobretudo, quando o espaço público rejeita os vícios privados e exige que cada indivíduo apague, na sua ‘persona’, os aspectos contraditórios. Mas estas situações revelam, sempre, que as estruturas sociais básicas, como a família e a escola, são incapazes de formar personalidades e promover uma interacção equilibrada com cada um dos seus membros.
O que resta esclarecer é a frequência destes casos. São casos esporádicos de abuso sexual e violência doméstica ou acontecem com regularidade, embora nem sempre sejam conhecidos e investigados pelas polícias e pelas autoridades judiciais? Estaremos perante uma patologia social e não apenas um conjunto de factos relevantes para a Psiquiatria e para o Direito?
No âmbito do Direito Penal, estes casos suscitam a necessidade imperiosa de conceber uma execução da pena que seja acompanhada de tratamento psiquiátrico. Trata-se, em geral, de agentes que não devem ser considerados inimputáveis, pois têm condições para distinguir entre o proibido o permitido e para compreender o sentido das normas penais.
Por fim, no seio da família e da escola, é necessário assegurar uma consciência de respeito pelos direitos humanos e pelo livre desenvolvimento da personalidade. Só assim poderemos evitar que respeitáveis doutores Jekyll se transformem em perigosos senhores Hyde, defendendo a sociedade e todas as potenciais vítimas dos seus impulsos criminosos.
Professora Catedrática de Direito Penal
IN "CORREIO DA MANHÃ"
11/09/11
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