05/09/2011

DANIEL DEUSDADO



A guerra cidadãos-Estado


Infelizmente já é tarde. Mesmo que o Governo prometa que vai cortar cegamente em tudo e mais alguma coisa, algo se quebrou de forma muito séria na relação entre os cidadãos e o Estado. Não há uma moral de Estado, não há um bem comum evidente para os sacrifícios. Esta decadência já vem de longe e atingiu o zénite com Sócrates. Depois, a famosa frase com que Passos Coelho derrubou o anterior Governo - "há limite para os sacrifícios" -, por antítese a todas as medidas que vem tomando, fez emergir uma falta de confiança e um desespero que leva as pessoas a interiorizaram a sensação de que os políticos estão a arruinar-lhes a vida. Sem que compreendam verdadeiramente como isso sucede. Ouvem falar de défice, de dívida, de milhões e milhões, mas interrogam-se - porquê? O resultado está aí: uma guerra subterrânea entre os cidadãos e o poder. Uma sensação de que o país não vai ajudar a cumprir os objectivos do plano da troika. Porque não consegue. E talvez já não queira. O tempo é outro: salve-se quem puder.
Isto traduz-se em coisas muito concretas: são os multibancos que 'não funcionam', são as facturas que estão cada vez mais difíceis de emitir, os "ricos" que pela calada já perceberam que têm de ir para outras paragens, ou as empresas que lentamente deslocalizam os lucros. A guerra fiscal traduz-se em pequenos-grandes gestos. Perdeu-se o respeito pelo Estado a partir do momento em que este usa o seu poder para esmagar o cidadão - rico ou pobre. Sem aviso. Sem moral.
Vale tudo. Aumentos de impostos em cima de aumentos. Transportes mais caros, novas portagens, taxas moderadoras, menos medicamentos, mais IVA, IMI... Despedimentos com indemnizações reduzidas de forma retroactiva. Fim de isenções fiscais - educação, saúde, habitação. Redução de deduções das empresas... Um clima de terror fiscal, que promete piorar - basta ser preciso mais. E vai ser, porque as pessoas vão fugir da falência pessoal e o país não vai arrecadar em impostos o que as projecções macroeconómicas prometem. Um parêntesis: o que dirá a troika dos desvios? E os mercados, os ratings? Portugal não cresce? O défice não diminui? Apertem: mais medidas, mais repressão fiscal. Em termos macroeconómicos, sempre o mesmo movimento: transferir dinheiro da economia privada para o Estado.
Dois argumentos legitimam, na perspectiva do Governo, este extenso caderno de maldades em tempo recorde: o Executivo vai realmente endireitar o Estado e, além disso, os impostos extras servem para socorrer os mais necessitados. Mas há dois grandes problemas nesta equação. Primeiro, toda a gente sabe que não é possível endireitar radicalmente as contas públicas sem que o Estado diminua funções e despeça massivamente funcionários. Como não o pode fazer, vai simulando. Uma reestruturação à superfície, que nunca chega ao fundo do problema. Até hoje sempre foi assim.
Segundo problema: não faz sentido confiar apenas no Estado para o socorro dos mais pobres. Sem se "privatizar" o combate à pobreza - ou seja, colocar a sociedade civil a tratar dos seus próprios problemas, através de dinheiro dos impostos entregue ao Banco Alimentar, AMI, Cáritas, etc. - ninguém acredita que estes impostos extras cheguem realmente onde deviam. Mais: o dinheiro que entra no fisco para combate à pobreza é em boa parte engolido pela máquina que tem como emprego combatê-la...
Os números da execução orçamental dos próximos meses vão dar ideia que país Pedro Passos Coelho tem pela frente. Se a confiança e o consumo continuarem a cair (como se começa a confirmar mês após mês) e o desemprego subir mais do que o ministro das Finanças previu ontem, os portugueses vão fazer-lhe sentir da pior maneira que há mesmo limites para os sacrifícios. É imperioso dar um pouco mais de tempo na concretização do ajustamento para que as empresas não fechem e a conflitualidade não rebente com a paz social do país. Isto não se mede em números mas é essencial. Se o Governo perder o equilíbrio dos portugueses, perde tudo. E está quase.

IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
01/09/11

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