O cherne é nosso
A insegurança que a crise (nacional, europeia e global) provoca nos cidadãos conduz, entre situações muito mais graves, a que mesmo os professores do ensino superior se reformem, mal a idade e os anos de serviço o permitam. São poucos os que, Mestres, aguardam pela jubilação.
Por tal facto tenho participado ultimamente em alguns jantares de despedida, onde revejo colegas que orientaram as suas vidas por outros caminhos e que guardam memórias saborosas, que fazem prolongar estes jantares até muito tarde.
Foi o caso, nesta semana.
Todos sabemos que a senhora Merkel e o senhor Sarkozy fazem reuniões bilaterais, às quais chamam históricas, ignorando despudoradamente os órgãos legítimos de direcção da União Europeia, cujos problemas discutem entre si.
Fazem-no porque esses órgãos estão esgotados, desacreditados, e têm lideranças frágeis, que deixarão que o Eixo Franco-Alemão acredite que é dono de todos nós.
VEM esta arenga a propósito de uma estória da nossa história contemporânea, na qual participei por acaso, mas cujo herói foi o professor Bernardo.
Liceu de Almada, 1975. Os dois únicos partidos políticos ‘permitidos’ eram então o PCP em versão UEC e o MRPP em versão ‘Meninos Rabinos que Pintam Paredes’. Éramos cinco na primeira comissão sindical eleita. Era mesmo unitária. Conseguimos trabalhar com elementos assumidos dos dois partidos que dominavam junto dos estudantes e que aí se digladiavam. No exercício do mandato que nos fora concedido, as votações foram sempre por unanimidade.
Dois pertenciam, respectivamente, ao MRPP e ao PCP, outros dois eram católicos, um mais politizado do que outro, e o Bernardo (o professor mais bonito do liceu, na opinião de alunas e de professoras) era de esquerda, mas não sei enquadrá-lo partidariamente. Não sei mesmo se alguém o saberia.
Aulas não havia muitas, porque a aprendizagem do exercício da liberdade era para todos nós a grande prioridade.
NUMA manhã, ao entrarmos, cedo, no liceu, o átrio tinha ‘barricadas’, construídas com mesas deitadas de lado, a fazer de escudos, e os estudantes armados de cadeiras nas mãos. Interpelámo-los energicamente, e cada um de nós ficou a fazer discursos junto dos dois grupos contentores.
Não me lembro se os ‘meus’ eram da UEC ou do MRPP. Sei apenas que deixei de ouvir o Bernardo e ouvia cada vez mais fortes as vozes ululantes que diziam: «Professora, saia daqui que isto não é consigo».
Não saí. Com a chegada de mais colegas, a juventude foi-se acalmando.
O Bernardo recordou-me agora, que fora chamado de urgência, porque alguns dos dois grupos tinham passado à agressão física numa sala de aula.
Quando entrou, o professor mais bonito do meu liceu viu um jovem com um fio de electricidade em volta do pescoço e dois adversários a apertar, um de cada lado. O adolescente continuava a bater-se como um herói em minoria quase total, disposto ao ‘martírio’.
ERA o Zé Manel (Durão Barroso). Dois chapadões em cada um – que a situação já não dava para discursos – e lá foi verdadeiramente salvo o presidente da Comissão Europeia.
Cresceu, mudou, e numas eleições mais ou menos recentes, o seu staff de campanha conseguiu convencer a Margarida, sua discreta esposa, a entrar em cena e dizer um poema de Alexandre O’Neill (Sigamos o Cherne), que lhe dedicou. O ‘Cherne’ passou, assim, a ser nosso. Dizemos mal dele quando queremos – o que , para alguns de nós, é muitas vezes –, mas não estamos na disposição de deixar que a dona Angela Merkel e o marido da dona Carla Bruni façam pouco dele.
Se for preciso, procura-se no Facebook e o pessoal de Almada, agora em comissão unitária, junta-se e vai pô-los no seu lugar. Pode ser que nenhum seja seu correligionário, nem concorde com a Comissão a que preside, mas este ‘Cherne’ é nosso – e, como dizia um senhor muito conhecido, «quem se mete com os nossos, leva».
IN "SOL"
29/08/11
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