18/09/2011

AUREA SAMPAIO








Cidadãos de segunda

Vítimas do mais improvável algoz ou do mais medíocre chefe de serviços, servem apenas para pagar e caladinhos para não incomodar o senhor primeiro-ministro

1.Qual é a coisa qual é ela que permite fugir legalmente ao fisco, garante ajudas do Estado e, ainda por cima, confere o simpático estatuto de benemérito ? Resposta: uma fundação. O senhor Sousa Cintra nunca foi dado a filantropias. Pelo contrário, chegou a ser processado por, durante oito anos, ter negado aumentos salariais e são conhecidas as quezílias que, durante anos, manteve com a população de Vila do Bispo por causa da construção de uma casa e de cortes unilaterais no caminho público de acesso à praia. Ficou famoso por seis anos de presidência do Sporting, pelos seus negócios nas cervejas e nas águas de mesa e diz-se muito poupado. O seu nome voltou agora à ribalta, depois de o Governo ter dado luz verde à sua fundação. Com património avaliado em 20 milhões de euros, a instituição inclui bens como a moradia de Cintra, em Lisboa (1,8 milhões), um prédio urbano (4,2 milhões), sito em Sagres, e uma empresa turística ligada à caça. Segundo os jornais, Cintra vai poupar 20 mil euros/ano de IMI com a inclusão dos dois primeiros imóveis no acervo da fundação. O ministro que aprovou a nova instituição não desmente. O mesmo ministro que faz parte de um Governo que "vendeu", há dias, a ideia de se preparar para moralizar as 800 fundações públicas e de passar a pente fino e reavaliar as privadas existentes. O mesmo Governo que é implacável com o modesto contribuinte, mas que não tem vergonha de continuar a permitir este regabofe de benefícios e favores do Estado a quem pode e nunca deu quaisquer provas de o merecer.

2. Há cerca de 37 mil professores contratados que vão ficar de fora das escolas, depois dos concursos já efetuados para preenchimento das vagas existentes. A semana passada alguns manifestaram-se e um deles deixou um desabafo significativo: "Só se ouve falar em avaliação e em quotas e não em quem fica sem emprego." Eis o exemplo elucidativo da perversidade dos atuais sindicatos. Na sua lista de prioridades estão, em primeiro lugar, os filiados que lhes pagam as quotas, ou seja, os que têm emprego; depois, vêm os outros - justamente, os mais desprotegidos, os que mais precisam. É por estas e por outras que o movimento sindical está em perda, sem prestígio e influência. Incapaz de se reinventar, como fez o capitalismo, acantonou-se na defesa dos trabalhadores do setor público e é daí que vai fazendo de conta, com os mesmos rostos e clichés de há décadas, as mesmas formas de luta, o mesmo tipo de organização. Tal como estão, arriscam-se ainda mais à irrelevância.

3. Aproveitei as férias para ir ao meu Centro de Saúde (CS) saber se já me tinha sido atribuído médico de família. Inscrevi-me há ano e meio e nunca mais ninguém me deu cavaco. Disseram-me que continuava sem médico e que nem devia ter qualquer esperança de algum dia vir a ter um. "Há utentes que esperam há 30 anos", atirou a funcionária, como se o número fosse um troféu e não uma vergonha. Quis saber como podia aceder a um clínico e informaram-me de burocracias sem fim nem garantias de consulta. Percebi que serei um pária no sistema, sem direitos iguais aos de outros "utentes", porque o sistema é incapaz de me atribuir um médico, apesar de eu pagar fielmente os meus impostos para o alimentar e manter, há longos anos. São cada vez mais os cidadãos de segunda, neste país. Vítimas do mais improvável algoz ou do mais medíocre chefe de serviços, servem apenas para pagar e caladinhos para não incomodar o senhor primeiro-ministro.


IN "VISÃO"
15/09/11

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