26/07/2011

SOFIA GUEDES VAZ








Somos verdadeiramente 
             quem queremos ser?

Se em vez de um sistema desenhado para promover competitividade, fosse antes a cooperação, outra característica fundamental da natureza humana, a selecionada, como se organizaria a nossa sociedade?


A literatura e o cinema estão cheios de histórias em que as personagens se modificam em função da maneira como os outros as veem, as amam, as aceitam. Por exemplo, no filme de Clint Eastwood, "Gran Torino", Walt Kowalski, o veterano da guerra da Coreia de mau feitio e irascível é de tal forma conquistado pelos seus jovens vizinhos asiáticos que acaba por dar a vida por eles.

São histórias como esta que nos relembram a influência das pessoas à nossa volta. Não só as pessoas individualmente, mas também os sistemas políticos, económicos e sociais influenciam e determinam muito de quem somos e como nos comportamos. Por isso faz sentido pensar quais são as premissas base em que assentam estes sistemas sendo talvez uma das mais importantes a que define a conceção de natureza humana. Por exemplo em filosofia política, esta reflexão sobre a natureza humana determina o tipo de regime político defendido. Thomas Hobbes, um filósofo inglês do séc. XVII tinha uma conceção muito negativa do ser humano: "o homem é o seu próprio lobo", a "guerra de todos contra todos", e a vida é "brutal, solitária e curta". O Leviatã que desenhou assentava consequentemente num sistema político autoritário. Já Rousseau, o filósofo suíço do séc. XVIII defendia que "o homem nasce livre, e em toda parte é posto a ferros" e que "o homem é bom por natureza, é a sociedade que o corrompe." O sistema político que Rousseau pensou aproxima-se dum sistema mais igualitário assente na ideia da vontade geral do povo. Entre a visão impiedosa da humanidade de Hobbes e a de Rousseau há uma série intermédia de diferentes conceções que justificam ora uma oscilação para mais autoridade ora para mais liberdade.

Embora nem sempre tenham consciência disso, as pessoas comportam-se de modo diferente conforme o sistema político que as rege e o mesmo se passa com o sistema económico. Este, tem tendência a pensar-nos como seres individualistas, egoístas, competitivos, racionais e maximizadores de utilidade. E se assim nos pensa, nós assim nos comportamos, sem termos grande hipótese de o fazer diferentemente, nem tempo para refletirmos no que nos está a acontecer. Uma empresa que não seja competitiva não vinga no nosso sistema. Mas, será que todas as empresas querem ser competitivas?

Um amigo, que viajava no Mali, comprou um chá a uma senhora que aquecia água e o fazia debaixo de uma árvore. Foi ficando por ali e reparou que ela comprava a água para fazer o chá, a uma outra senhora que o ia buscar a uma distância não muito grande. Perguntou-lhe então: "porque não vai a senhora comprar diretamente a água ali ao fundo?" ao que ela retorquiu, "e depois "ela" (apontando para a outra senhora) viveria de quê?".

Se o sistema económico pensar em nós como seres morais, seres altruístas, relacionais, cooperativos, como estaria organizada a nossa economia? Quais seriam as instituições que nos regeriam, como se organizaria a nossa sociedade, como nos comportaríamos nós?

A atual crise financeira e económica exige que repensemos o nosso sistema e arranjemos soluções para lidar com os graves problemas por que atravessamos. Vivemos num tempo em que estamos obcecados em procurar soluções para os problemas que nos rodeiam mas quiçá não pensamos o suficiente sobre os problemas. Será que pensar resolver a atual crise com mais crescimento e com mais competição é mesmo a solução? Se perdermos um pouco de tempo a refletir na importância das diferentes conceções sobre a natureza humana e na influência que estas têm no sistema, talvez consigamos pensar noutras soluções por outras perspetivas. Será que promover a cooperação levaria a mais equidade, mais distribuição, menos pobreza, menos desemprego?

Atualmente a nossa economia assenta no crescimento da produção e consumo, e nós vivemos nessa realidade como se fosse única e insubstituível. É uma realidade confortável que nos dá um certo nível de felicidade (material). Não temos noção que nos seja imposta porque a promoção do consumo não assenta numa atitude forte por parte do Estado. O consumerismo não precisa de autoridade, de coerção, de imposição, de policiamento ou de regulamentos assentando antes em sedução, publicidade, relações públicas, novos desejos, e novas necessidades. Não pensamos muito porque sabemos que temos que mudar, mas não queremos verdadeiramente mudar, e é mais fácil ignorarmos a potencial insustentabilidade a nível económico, social e ambiental.

Resta a esperança que apareça algo que nos leve a refletir e pensar melhor em quem queremos ser. Num diálogo do "Melhor é impossível", Melvin (Jack Nickolson) elogia Carol (Helen Hunt) dizendo que começou a tomar comprimidos para melhor controlar as suas obsessões. Ante a sua incredulidade pelo elogio, Melvin explica "tu dás-me vontade de ser um homem melhor". Precisamos de um sistema político, económico e social que nos pense diferentemente e consequentemente nos dê vontade, oportunidade e condições para sermos mais altruístas, mais cooperativos e talvez, melhores seres humanos.


IN "VISÃO"
25/07/11

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