04/07/2011

LUÍS FILIPE BORGES


Os outros


Marília percebe que hoje os homens olharam para ela de maneira diferente – mérito dos saltos altos novos e da saia justa a pentear os joelhos.

Marília dança em cima de uns saltos demasiado compridos para ela. No pain, no gain – pensa (tem o hábito/mania/vício de utilizar expressões inglesas). Entre a beleza e a utilidade, no que ao sexo feminino diz respeito, sempre ganharam os gregos sobre os romanos. Por isso não resistiu a levar para casa, num equilíbrio precário todavia elegante, os sapatos recém-experimentados. Há muito os perseguia, sabe até – diz-lhe aquela voz irritante dentro da sua cabeça que será ela própria lúcida, advogada do Diabo contra si mesma – que não fazem propriamente o seu estilo, mas cede à tentação. Consola-se com a opinião de Oscar Wilde a propósito das mesmas.

Marília tem 42 anos, um emprego das 9 às 6, dois filhos adolescentes, sonhos simples quase todos realizados (falta aquela viagem a Dublin) e percebe que hoje, no caminho para casa, os homens olharam para ela de modo diferente – mérito dos saltos altos novos e da forma como a mistura destes com uma saia justa a pentear os joelhos resultou num benefício das suas pernas, ainda bem torneadas para a idade. Sorri, enquanto procura a chave a meio do hall do prédio. Menos por causa dos olhares referidos, mais pela forma como duas vizinhas saídas do elevador lhe invejaram o look. Hábito/mania/vício. With a little bit of beauty comes a little bit of pain.

Octávio é o pai dos seus filhos, tem 45 anos, é gestor duma empresa cuja utilidade se perde na rotina de duas décadas ao serviço, fantasia com a filha universitária de uma das vizinhas mencionadas e pouco se importa pelo interesse literário da capital irlandesa. Irá para fazer feliz a esposa (detesta a palavra) e para confirmar a sua impressão antiga de que a Guinness é sobrevalorizada. Acabou de gastar uma pipa de massa, para usar a sua expressão, em duas garrafas de vinho (só o provou uma vez, no casamento da melhor amiga de Marília), e enquanto retira cuidadoso a caixa de madeira do seu carro cinzento de executivo mediano recebe uma mensagem escrita, assinada por Jennifer: ‘It’s done ;) Tomorrow, usual time, usual place, suite 501’.

Quando entra em casa há ainda um rubor a persistir-lhe na face mas acha graça à imagem da mulher descalça, empunhando os dois telemóveis como se a qualquer momento os pudesse calçar.

– O que é isso?

– Hã… vinho. – esclarece um atrapalhado Octávio, de pronto jurando a pés juntos que é para celebrar o seu 20º aniversário de casamento embora ainda faltem quase 5 meses para a data.– Estava a bom preço, por isso…

O constrangimento é interrompido pelo casal de filhos na idade irritante em que sentem a necessidade de violar decibéis. Querem saber se podem receber amigos em casa amanhã. Perante o silêncio da mãe, Octávio diz que, por ele, não há problema – tem um compromisso profissional à noite. Marília junta-se então, para espanto dos adolescentes, garantindo que ‘é capaz’ de sair com velhas amigas. E, talvez impulsionada pelo verbo, sai da sala com um inaudível ‘Whatever’ a ecoar-lhe no cérebro.

Sozinha no quarto, parece encontrar consolo num bilhete desdobrado com vagar, escondido num bolso interno da mala (esta até vai bem com os novos sapatos, pensa): ‘De certeza que não te apetece um hotel diferente? Quero-te! Assinado, Alex’.

Nessa noite, Octávio e Marília falaram pouco, discutiram-se trivialidades com os miúdos ao jantar, entre reiterados pedidos para não sujarem a casa amanhã, depois viu-se um concurso na televisão, os filhos foram para os quartos conectar-se aos computadores, Marília adormeceu primeiro enquanto o marido tomava um duche tardio. ‘Octávio, vens para a cama?’ – e a resposta não veio, talvez engolida pelo barulho da água, talvez porque ele odeia o seu próprio nome.

Sábado. Nas tardes deste dia os filhos jogam ténis. Marília permitiu-se acordar tarde e demorou a perceber que o marido já não estava. Confessou a si própria, contudo, apreciar o silêncio sepulcral da casa vazia. Entregou-se a um longo ritual de banho, maquilhagem e cremes pelo corpo todo e, antes de sair, não pôde deixar de se aperceber que a caixa de madeira tinha sido aberta e uma das garrafas faltava. Um dos telemóveis apitou então com uma mensagem obscena de Alex – Oh my God, como as palavras dele têm o condão de rejuvenescê-la – e Marília, excitada, vestiu-se/despiu-se a preceito.

Octávio bate à porta impaciente.– Por que demoraste tanto? Li os jornais todos que havia no lobby do hotel.
– In english, please. E Jennifer abraçou-o, fê-lo pousar a garrafa. Despiu-o.
Meia hora depois, na confusão de roupa espalhada, destacavam-se os saltos altos novos. Funcionaram? – pergunta ela. De que maneira, retorquiu o olhar dele.
– A garrafa era para ser surpresa, desculpa, devia ter deixado a caixa no carro mas foi tão caro qu…
– Shut up. Hábito/mania/vício. E a outra de Octávio beijou, lânguida, o outro de Marília. Dentro de nada entregam-se ao vinho que ambos tanto apreciaram naquele casamento, o mais caro de todos os que já beberam, uma vez por mês, quando fogem do quotidiano. Nos períodos de cansaço entre o sexo devolvem-se aos nomes originais, de sorriso recíproco nascido na confiança mútua.

– E a outra garrafa, Octávio?
– Fica para Dublin… - respondeu o marido, com ternura, sem hesitar.
– Levamos os miúdos? – Marília feliz, surpreendida. E logo ele reagiu, finalmente em inglês, por momentos de novo Alex:
– Fuck no.


IN "SOL"
27/06/11

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