25/05/2011

TOMÁS VASQUES



O encontro fatal

Independentemente da sentença judicial, o que já não pode ser apagado: uma trabalhadora não qualificada derrubou definitivamente o poderoso DSK

Os acontecimentos que envolveram Dominique Strauss-Kahn, em Nova Iorque, no auge da crise das dívidas soberanas e do acentuado desmoronamento do Estado de bem-estar social na Europa, alimentaram as mais acaloradas discussões. Não faltaram sequer as teorias conspirativas, os serviços secretos franceses, as cartas inflamadas de amigos, como a de Bernard-Henri Lévy. Do que se passou ficam apenas registadas as imagens, que correram o mundo, do director-geral do FMI e, até então, provavelmente, o próximo presidente da França, algemado, cabisbaixo e ladeado por meia dúzia de polícias, a caminho da prisão. Estas imagens, apesar de reais, e cirurgicamente preparadas, situam-se já no território dos símbolos - o símbolo das grandezas e das misérias do império do Ocidente. Uma andorinha não faz a Primavera, dirão alguns, repetindo Aristóteles; no entanto, entrecruzam-se no caso DSK todos os ingredientes, de um modo tão concentrado, que mais parece uma genial obra de ficção. Tudo parece ter sido preparado até ao mínimo detalhe, numa simbiose perfeita entre os protagonistas. Ele, o carrasco (à parte a sua inocência ou culpa, para o caso tanto faz), homem poderoso, rico, diariamente a influenciar os destinos do mundo; ela, a vítima, uma empregada de limpeza, imigrante, diariamente a limpar quartos e sanitas, e a viver no bairro pobre de Bronx. O cenário perfeito. Independentemente da sentença judicial, o que já não pode ser apagado: uma trabalhadora não qualificada derrubou definitivamente o poderoso DSK, num quarto de um hotel, entre a sede do FMI e uma reunião com a chanceler alemã, a senhora Merkel, onde iria discutir a reestruturação da dívida grega e, provavelmente, mais medidas de austeridade para gregos e troianos.

O imaginário colectivo é construído sobre símbolos e mitos, interpretados à maneira de Castoriadis. E os americanos são especialistas em criar estes símbolos, desde o tempo dos cowboys. Este caso, que envolveu uma das mais brilhantes personagens da nomenclatura dirigente mundial e uma empregada de limpeza, reforçará a memória do cidadão comum (o pescador irlandês, o desempregado espanhol, o camponês grego ou a empregada doméstica portuguesa), às voltas com a "profunda crise" que lhes caiu em cima, que a justiça é cega e é igual para todos, pobres e ricos, poderosos e humildes. É claro que o director-geral do FMI tem um milhão de dólares para entregar como caução, mais 5 milhões como garantia, mais 140 mil por mês para a segurança, fora o advogado, o apartamento e tudo resto. Mas isso são pormenores, insignificâncias metajudiciais que já não fazem parte do argumento.

Envolvemo-nos na discussão do acessório e perdemos de vista o essencial. É a propagação destes símbolos, são estes mitos de igualdade de tratamento e de oportunidades, nas sociedades democráticas do Ocidente, que nos deixam, a todos, mais disponíveis e vulneráveis para aceitar o que aí vem, o que o futuro próximo nos reserva: as leis do trabalho invertidas, transferindo-se a protecção para o patronato; a saúde desprotegida; a idade de reforma às portas da morte; as férias reduzidas ao sabor da "viabilidade económica" das empresas, uma redistribuição desigual da riqueza produzida e por aí fora. E o que torna esta história de DSK mais estranha é que o seu protagonista era o director--geral do FMI, instituição financeira normalmente associada às medidas de austeridade e à exigência de corte das despesas dos salários, da saúde e da educação.

Tudo isto nos conduz à inevitabilidade do retorno à política, à discussão dos projectos de sociedade, do bem-estar e da participação dos cidadãos, da transparência das instituições democráticas. A tudo aquilo de que não se fala na presente campanha eleitoral.

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23/05/11

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