17/03/2011

JOSÉ LEITE PEREIRA







Batemos no fundo 

Cavaco Silva preferiu cavalgar a onda dos 
descontentes, dos jovens e dos seus 
correlegionários, e abriu a porta 
que restava abrir antes de irmos a votos. 

Ouvido o discurso do presidente e vistas as novas medidas de austeridade avançadas pelo Governo, não há que ter grandes esperanças quanto ao futuro da legislatura: é certo que o Governo cairá e parece cada vez mais claro que, perdidas as ilusões do lado do executivo, só o PSD não sabe quando accionar a censura final, coisa que não conseguirá adiar por muito mais tempo, sob pena de ser acusado de pensar nos seus interesses e não nos do país. 

O que vai ficando claro é que o PSD vai ter de avançar para eleições mesmo sem ter garantida a maioria absoluta, sabendo mesmo que o mais certo é trocar de posição com o PS, ficando com a incomodidade de governar à mercê da oposição e ao sabor de uma austeridade crescente, dificuldades a que o PS tem acrescentado a incapacidade de cortar cerce nos gastos do Estado. 

É por isso que não se compreende o tom do discurso de Cavaco Silva, quando fica claro aos olhos de toda a gente que os próximos tempos aconselham concertações e não roturas. Grande parte das críticas que o presidente alinhou no discurso de posse são hoje voz corrente e algumas das opções seguidas pelo Executivo erradas, porque tem pedido demasiados sacrifícios, deixando, pelo contrário, que a máquina do Estado continue excessivamente pesada. Mas, ainda que este Governo possa estar a dias, semanas ou meses de ser derrubado, no futuro é preciso contar com Sócrates e o PS, pois ambos terão papel de relevo a desempenhar no futuro, mesmo que os socialistas percam nas urnas. E o que Cavaco Silva fez com o seu duro discurso de posse foi afastar Sócrates e o PS actual de soluções futuras, apontando-os como a causa dos problemas actuais.

Mas o discurso de Cavaco Silva enferma de um outro mal, porventura o maior: este discurso poderia ter sido feito na anterior legislatura mas, acima de tudo, deveria ter sido proferido na campanha eleitoral. Cavaco Silva deveria ter dito nessa altura o que pensava da situação do país e da governação que estava a ser seguida. Tudo seria mais claro e sobretudo teria outra frontalidade. Mas Cavaco é Cavaco e lida mal com a crítica, pelo que terá preferido que este discurso saísse da boca de um presidente eleito e não de um mero candidato, por muita força que ele tivesse. É esse mesmo espírito que, perante as críticas ao discurso, leva o presidente a pedir no facebook que se leia melhor o que disse. O insuspeito Ramalho Eanes, presidente da comissão de honra de Cavaco, classifica o discurso apenas como "razoável" e põe o dedo em falhas óbvias, a maior das quais é Cavaco ter-se esquecido de atribuir à crise internacional uma quota- parte de responsabilidade na nossa própria crise. O facto é que, num momento em que o país precisava de um discurso de verdade, que não fechasse portas a soluções que passassem por acordos, Cavaco Silva preferiu um ajuste de contas, a que o Governo agora respondeu não lhe dando sequer conta das novas medidas de austeridade, numa atitude arrogante que está em linha com o que de pior tem feito. 

Não há muito mais a dizer. Quando o próprio presidente quer ouvir o clamor que vem da rua, isso significa que o diálogo foi ultrapassado, reduzido a coisa inútil. Cavaco tem-se em boa conta, certamente em demasia, e julgará que as condições em que governou - e nem sempre bem - são como as actuais. O tempo deveria ser de mais solidariedade e de conjugação de esforços. O país vive uma das maiores crises da sua história, enfrentamos todos - e não apenas os jovens com curso superior e sem emprego ou entregues à precariedade - dificuldades que mesmo a geração que passou pelos racionamentos e privações da guerra poderá não ter sentido. Isso deveria ser suficiente para que nos dispuséssemos a procurar consensos. Cavaco Silva preferiu cavalgar a onda dos descontentes, dos jovens e dos seus correlegionários e abriu a porta que restava abrir antes de irmos a votos. Só já nos falta um pequeno passo, a pequena formalidade de definirmos quando vamos a votos. Pela simples razão de que acabámos de bater no fundo. 

IN "JORNAL DE NOTÍCIAS" 
12/03/11

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