20/03/2011

8 - VULTOS DA CULTURA DA PRIMEIRA REPÚBLICA »»» aquilino ribeiro



"Alcança quem não cansa", diz o ex-libris de Aquilino Ribeiro. Não poderia ter escolhido melhor este escritor, que se designava a si próprio como um "obreiro das letras" e que trabalhou incansavelmente quase até ao dia da sua morte, chegada a 27 de Maio de 1963; foi pouco depois de uma viagem ao Porto; aí ocorrera mais uma das muitas homenagens com as quais nesse ano, precisamente, o país consciente (e temerário) prestava tributo aos cinquenta anos de trabalho do "mestre", cuja arte de ficcionista, descontando alguma prosa de folhetim, começara a vir a lume em 1913, com a publicação do volume de contos Jardim das Tormentas.

Nascido a 13 de Setembro de 1885 no concelho de Sernancelhe, freguesia  de Carregal de Tabosa (uma lápide assinala a casa onde se julga que nasceu), filho de Mariana do Rosário Gomes e do padre Joaquim Francisco Ribeiro, tem uma infância, ao que se sabe, de miúdo um pouco mais que travesso, a tal ponto que ainda hoje é possível encontrar na zona quem tenha ouvido contar histórias picarescas de um menino destinado pela família à vida de sacerdócio. 

A sua ida para o Colégio da Senhora da Lapa, em 1895, seria o início de um percurso que o leva seguidamente para Lamego, mais tarde para Viseu (ano de 1902), onde vai estudar Filosofia, e, pouco tempo depois, para o Seminário de Beja, frequentado, ao que consta, pelos ordenandos mais recalcitrantes. Em 1904 é expulso do seminário, depois de ter dado uma réplica cortante a uma acusação do Padre Manuel Ançã, um dos dois irmãos que ao tempo dirigiam a instituição.




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Registos deste tempo juvenil encontramo-los ficcionados em A Via Sinuosa, no díptico Cinco Réis de Gente e Uma Luz ao Longe, com o decurso da acção, neste último título, no Colégio da Lapa, e sob a forma de memórias em Um Escritor Confessa-se, publicado postumamente. Neste volume, contudo, encontramos fundamentalmente relatos de um tempo tão empenhado politicamente como aventuroso, do qual há também relato ficcional no romance Lápides Partidas, que prossegue a história  de A Via Sinuosa. É o tempo que, pese embora algumas intermitências, Aquilino Ribeiro passa em Lisboa, chegado em 1906; aí, divide-se pela escrita, com artigos de opinião publicados em jornais como A Vanguarda, jornal republicano, pela tradução (traduz Il Santo, de Fogazzaro) ou pela redacção, em parceria com José Ferreira da Silva, do folhetim A Filha do Jardineiro, uma ficção ao mesmo tempo de propaganda republicana  e de crítica corrosiva às figuras do regime monárquico, a começar por D. Carlos. 
Verdadeiro "homem de acção", um tipo social que o princípio do século XX muito exaltou, adere por completo às movimentações republicanas, quer através de um posicionamento pela escrita, quer através da participação em actividades que acabam por levá-lo à cadeia. De facto, no ano de 1907, o rebentamento de caixotes de explosivos guardados na sua casa leva à morte de dois correligionários e a que seja encarcerado na esquadra do Caminho Novo, de onde se evade em situações rocambolescas, como se pode ler no volume de memórias antes mencionado. Depois de alguns meses de clandestinidade em Lisboa, segue para Paris; aqui inscreve-se no curso de Filosofia da Sorbonne, onde tem a oportunidade de  receber a lição de mestres como George Dumas, André Lalande, Levy Bruhl, Durckeim, e onde contacta com a intelectualidade portuguesa que, também por motivos políticos, se via forçada a viver fora de Portugal. 




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O curso, a política, os projectos editoriais que vai desenvolvendo com os companheiros de exílio (parte destas circunstâncias vêm relatadas em Leal da Câmara, uma biografia deste pintor), as crónicas que envia para Portugal, para publicação, nomeadamente na Ilustração Portuguesa e no jornal A Beira, a observação, as pesquisas de bibliófilo ainda lhe deixam tempo para escrever, na biblioteca da Sainte Geneviève, perto da Sorbonne, o volume de contos Jardim das Tormentas. Também em Paris, conhece Grete Tiedemann, sua primeira mulher e mãe do filho mais velho. No dealbar da guerra mundial, é forçado pelas circunstâncias a regressar ao seu país com a família (volta em 1914); a vida parisiense dos tempos que antecedem o advento do conflito vem relatada no volume diarístico 

É a Guerra, no qual ganha proeminência a crítica àquele que era na altura o ministro da Legação de Portugal em Paris, João Chagas. Fica incompleto o curso de Filosofia, que deixa para trás já depois de se ter matriculado no quarto ano, como se pode ver em registos guardados no Centre d'Accueil et de Recherche des Archives Nationales (Paris).
Já em Portugal, ocupam-no, para além da escrita ficcional e da escrita cronística para a imprensa periódica (uma actividade que desenvolverá com enorme regularidade ao longo de toda a sua vida), o trabalho de professor no Liceu Camões, onde fica durante três anos, e, posteriormente, o cargo de segundo bibliotecário na Biblioteca Nacional, para onde entra a convite de Raul Proença. Este posto, entre outras vantagens, dá-lhe a possibilidade de alimentar o seu gosto de bibliófilo pelo livro antigo, raro, um gosto que o levará produzir trabalhos de índole investigativa, publicados, por exemplo, nos Anais das Bibliotecas e Arquivos,  e que transparece também na produção romanesca (veja-se A Via Sinuosa, o seu primeiro romance). Além disso, com colegas de trabalho - um "grupo de intelectuais altamente representativo da mentalidade do tempo", como escreveu Manuel Mendes - continua a desenvolver uma actividade cívica que vai ter a sua expressão mais visível na revista Seara Nova, publicação preponderante quer na difusão dos ideais republicanos (sociais e educativos, nomeadamente), quer mesmo no evoluir da conturbada vida política da 1.ª República. 

A sua faceta de "homem de acção", como já se viu, deu frutos ainda nos anos finais da monarquia (ainda hoje há quem se interrogue se no dia do regicídio Aquilino terá sido a "terceira carabina do Terreiro do Paço", para usar uma expressão de Baptista Bastos) e torna vincadamente a manifestar-se com a sua participação, em 1927, na revolta frustrada contra a ditadura militar sequente ao golpe de 28 de Maio de 1926, sendo por isso obrigado a refugiar-se em Paris. De regresso a Portugal, volta a participar numa acção anti-regime (no chamado movimento do regimento de Pinhel), mas é capturado e levado para a prisão do Fontelo, em Viseu (um edifício que ainda hoje se pode ver nesta cidade). Foge também desta vez, esconde-se pelas serranias beirãs e enceta uma difícil jornada que de novo o levará até Paris; destas experiências de activista político aproveitará também o escritor, no enredo, por exemplo, de O Arcanjo Negro (redigido em 1939-40, mas, devido a problemas com a censura, publicado apenas em 1947) ou de O Homem que Matou o Diabo. Sublinhe-se que na década de 20 publicara duas obras que, a par de Terras do Demo e de A Casa Grande de Romarigães, constituem dois dos seus textos mais emblemáticos: o picaresco Malhadinhas, primeiro inserido no volume de novelas Estrada de Santiago, depois em edição independente, e o extraordinário Andam Faunos pelos Bosques, uma sátira genial, mas tolerante ao conservadorismo cristão e um hino ao amor livre, consagrado tanto pelo anarquismo (que Aquilino chegou a abraçar mais do que intelectualmente) como pela palavra bíblica de Antigo Testamento, ponto de retorno constante do seu pensamento dúctil e cultivadíssimo. 



O tempo de exílio termina em 1932, ano em que regressa ainda clandestinamente a Portugal; tinha entretanto casado em segundas núpcias (a primeira mulher morrera no ano de 1927) com Jerónima Dantas Machado, filha de Bernardino Machado, o presidente da República deposto por Sidónio Pais. O único filho do casal, segundo de Aquilino, nasce em 1930, ainda fora do país. Também em 1932, é aministiado (tinha sido julgado e condenado à revelia em 1929), o que lhe permite regressar à capital (fixando-se, mais precisamente, na Cruz Quebrada); acalmados, de um lado, os génios conspirativos e, de outro lado, os génios persecutórios, tem a possibilidade de se dedicar plenamente à escrita, continuando a produção ficcional, o trabalho de tradução, o trabalho ensaístico (lato sensu) e a colaboração na imprensa periódica. Em 1933, o conjunto de novelas As Três Mulheres de Sansão recebe o Prémio Ricardo Malheiros, da Academia das Ciências de Lisboa,  e em 1935 é eleito sócio correspondente desta instituição, da qual se tornará sócio efectivo em 1957. 
No entanto, mais do que o reconhecimento oficial, são a sua grandeza de escritor e também a temeridade política que o tornam merecedor do epíteto de mestre; têm o seu quê de lendário as idas ao Chiado, ao fim da tarde, para tertúlias à porta da Bertrand, a sua editora. Não tendo nunca abdicado da originalidade, um dos seus grandes valores estéticos, acabou por não alinhar com nenhum dos movimentos literários de que foi contemporâneo, do modernismo (em cartas de Fernando Pessoa ficamos a saber que era apreciado por este poeta), ao presencismo, que não o poupou a críticas (vindas, muitas delas, de José Régio e publicadas nas páginas da Presença), ao neo-realismo, embora críticos literários desta última corrente tivessem apreciado algumas das suas à luz desta doutrina, que nunca foi a do escritor. Não abdicou também da consciência política e cívica que, como vimos, o animou desde a juventude. Embora, findo o último período de exílio, se tenha dedicado afincadamente à escrita, continuou a participar em acções críticas da ditadura salazarista. Aderiu ao MUD (Movimento de Unidade Democrática) e empenhou-se na defesa e difusão da causa, por exemplo, em textos publicados na imprensa diária, em 1948-49 apoiou a campanha presidencial de Norton de Matos, integrou, com outras figuras do saber, a Comissão Promotora do Voto, militou na candidatura de Humberto Delgado à presidência da República, no ano de 1958. 


A este activismo político, há que juntar a tenacidade com que, durante mais de duas décadas, promoveu uma agregação formal e institucionalizada dos escritores até conseguir criar, unido a alguns contemporâneos, a Sociedade Portuguesa de Escritores, de que foi fundador e presidente, isto no ano de 1956. O tempo não lhe subtrai o prestígio de grande figura da escrita, reconhecido dentro e fora de de Portugal. Atestam esse prestígio factos como a apresentação da sua candidatura ao Nobel, proposta por Francisco Vieira de Almeida e subscrita por José Cardoso Pires, David Mourão-Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, José Gomes Ferreira, Maria Judite de Carvalho, Joel Serrão, Mário Soares, Vitorino Nemésio, Abel Manta, Alves Redol, Luísa Dacosta, Vergílio Ferreira, entre muitos outros. Atestam-no também as homenagens que recebe no Brasil, país aonde se desloca, por motivos pessoais, no ano de 1952. Atesta-o sobremaneira o extraordinário movimento que se desenvolveu em sua defesa depois da publicação do romance Quando os Lobos Uivam, em 1958, considerado pelo regime como injurioso das instituições de poder e levando à instauração de um processo crime contra o escritor. Para além da defesa formal, levada a cabo pelo advogado Heliodoro Caldeira, Aquilino tem o apoio de cerca de 300 intelectuais portugueses que se juntam num abaixo-assinado pedindo o arquivamento do processo; fora de Portugal, François Mauriac redige uma petição em defesa de Aquilino, assinada, nomeadamente, por Louis Aragon e André Maurois e publicada em vários jornais e revistas franceses. O processo crime acaba por ser arquivado cerca de vinte meses depois da sua instauração, na sequência de uma amnistia.



Embora sem se fazer completamente justiça, encerrava-se uma acção injuriosa dirigida contra alguém que foi e será sempre um dos nomes maiores das nossas letras, que trouxe à língua uma plasticidade impressionante combinando o rústico com o erudito, que foi um observador atento das 'grandezas e misérias' do género humano, que criou uma galeria de personagens passando pelo campesino beirão, pelo pequeno-burguês de província, pelo cosmopolita, pelo idealista, pelo obcecado, pelo asceta e pelo sibarita, pela mulher tentadora e pela virgem solícita e generosamente disponível...alguém que, enfim, por via da reflexão, saber, trabalho, estudo, deixou para os séculos uma visão exaltante da existência, mas temperada pela melancolia de quem não esquece a inevitável efemeridade de todas as coisas. "Mais não pude", pretendeu Aquilino que fosse o seu epitáfio. 


Bibliografia activa
As indicações quanto a géneros e conteúdos seguem, sempre que possível, o que consta nos volumes a seguir mencionados.
1915 - Jardim das Tormentas (contos).
1918 - A Via Sinuosa (romance).
1919 - Terras do Demo (romance).
1920 - Filhas de Babilónia (novelas).
1922 - Estrada de Santiago (novelas); incluía O Malhadinhas.
1922 - Recreação Periódica (tradução de Amusement Périodique, do Cavaleiro de Oliveira).
1924 - Romance da Raposa (romancinho infantil).
1926 - Andam Faunos pelos Bosques (romance).
1930 - O Homem que Matou o Diabo (romance).
1931 - Batalha sem Fim (romance).
1932 - As Três Mulheres de Sansão (novelas).
1933 - Maria Benigna (romance).
1934 - É a Guerra (diário).
1935 - Alemanha Ensanguentada (caderno dum viajante).
1935 - Quando ao Gavião Cai a Pena (contos).
1936 - O Galante Século XVIII (compilação e tradução de textos do Cavaleiro de Oliveira).
1936 - Anastácio da Cunha, o Lente Penitenciado (vida e obra).  
1936 - Arca de Noé III Classe (contos para as crianças).
1936 - Aventura Maravilhosa de D. Sebastião (romance).
1937 - S. Banaboião Anacoreta e Mártir (romance).
1938 - A Retirada dos Dez Mil (tradução da Anábase, de Xenofonte).
1939 - Mónica (romance).
1939 - Por Obra e Graça (estudos).
1940 - Oeiras (monografia).
1940 - Em Prol de Aristóteles (tradução do texto latino de André de Gouveia).
1940 - O Servo de Deus e a Casa Roubada (novelas).
1942 - Os Avós dos Nossos Avós (história).
1943 - Volfrâmio (romance).
1945 - Lápides Partidas (romance).
1945 - O Livro do Menino Deus (o Natal na história religiosa e na etnografia).
1946 - Aldeia (terra, gente e bichos).
1947 - O Arcanjo Negro (romance).
1947 - Caminhos Errados (novelas).
1947 - Constantino de Bragança, VII Vizo-Rei da Índia (história).
1948 - Cinco Réis de Gente (romance).
1948 - Uma Luz ao Longe (romance).
1949 - Camões, Camilo, Eça e Alguns Mais (estudos de crítica histórico-literária).
1949 - O Malhadinhas (edição autónoma).
1950 - Luís de Camões, Fabuloso, Verdadeiro (ensaio).
1951 - Geografia Sentimental (história, paisagem, folclore).
1951 - Portugueses das Sete Partidas (viajantes, aventureiros, troca-tintas).
1952 - Leal da Câmara (vida e obra).
1952 - O Príncipe Perfeito (tradução da obra Kirou Paideia, de Xenofonte).
1952 - Príncipes de Portugal. Suas grandezas e misérias (história).
1953 - Arcas Encoiradas (estudos, opiniões, fantasias).
1954 - O Homem da Nave (serranos, caçadores e fauna vária).
1954 - Humildade Gloriosa (romance).
1955 - Abóboras no Telhado (crónica e polémica).
1957 - A Casa Grande de Romarigães (crónica romanceada).
1957 - O Romance de Camilo (biografia e crítica).
1958 - Quando os Lobos Uivam (romance).
1959 - Dom Frei Bertolameu. As três desgraças teologais (legenda).
1959 - D. Quixote de la Mancha (versão da obra de Cervantes).
1959 - Novelas Exemplares (versão da obra de Cervantes).
1960 - No Cavalo de Pau com Sancho Pança (ensaio).
1960 - De Meca a Freixo de Espada à Cinta (ensaios ocasionais).
1963 - Tombo no Inferno. O Manto de Nossa Senhora (teatro).
1963 - Casa do Escorpião (novelas).
1967 - O Livro de Marianinha (lengalengas e toadilhas em prosa rimada).
1974 - Um Escritor Confessa-se (memórias).
1988 - Páginas do Exílio. Cartas e crónicas de Paris (recolha de textos e organização de Jorge Reis).

Obras traduzidas (apuradas)
A Casa Grande de Romarigães (para castelhano - edição em Cuba -, romeno e francês - com várias edições)
Quando os Lobos Uivam (para alemão e inglês)
A Via Sinuosa (para francês) 

Autora: SERAFINA MARTINS 

IN " PÁGINA DO INSTITUTO CAMÕES"


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