10/02/2011

JUDITE FRANÇA



Lamento professor Cavaco, 
       mas há um homem 
             novo que nasceu 
                   depois da crise



Este «novo» português estabelece uma relação directa entre os seus impostos e o que o Estado faz com o dinheiro. E o «buraco BPN» passou a ter acesso directo ao bolso dos contribuintes

Há poucos anos, a maioria dos portugueses dificilmente estabeleceria uma relação directa entre aquilo que paga de impostos e o que o Estado faz com o dinheiro. O dinheiro, que é o dinheiro dos contribuintes.

Hoje, depois da crise, surgiu um novo português. Não é aquele homem novo, que tanto se falava no tempo de Cavaco Silva primeiro-ministro. Esse homem despertou para as engenharias financeiras e acreditou que o país chegaria à opulência, em direcção ao El Dorado.

Esse homem novo morreu e há pouco tempo nasceu outro: um homem novo 2, que olha para as contas públicas, para o défice, para os impostos, para as notícias da dívida, para os mercados. Um homem que passou a pesquisar a palavra crise e spread no Google. Um homem que ouve a palavra «buraco» e sabe que é ao seu bolso que o Estado vai. Um homem que passou a associar o «buraco do BPN» a todos os cortes, sacrifícios e injustiças, nas quais o país vive soterrado, preso pelos pés a uma carga fiscal sempre a aumentar *.

É por isso que a teoria de que o tema é demasiado técnico e cansativo cai por terra. Porque o homem novo 2 pode até não entender os meandros da SLN, Banco Insular ou BPN. Mas entende que o buraco lhe sai do bolso. Ora aí está: quando se trata do nosso bolso, não há temas demasiado técnicos.

E digo os temas, porque há dois. A gestão ruinosa, a nacionalização e «o contribuinte-é-que-paga» e o caso que afecta Cavaco Silva e anima a campanha. São dois temas diferentes. Mas ambos têm a mesma sigla e coincidem no tempo.

Há muito que o BPN já podia estar resolvido. Ficou a fritar em lume brando durante os últimos dois anos para não pesar no défice. E o timing foi perfeito para afectar o principal rival de Manuel Alegre nas eleições. E a culpa é de Cavaco, claro está. À primeira menção da sigla, a resposta deveria ter sido imediata, clara, concisa. Não explicar abriu o flanco a dúvidas, inquirições, boatos e, sobretudo, passou a tema de arremesso para a campanha.

Alegre não tinha nada de realmente importante para atirar contra Cavaco. Agora já tem. E Cavaco só pode lidar com este tema com preocupação. Porque agora há o tal homem novo 2 que já liga a estes assuntos, por mais complicadinhos que sejam.

O problema é que o Presidente da República acha que é preciso «nascer duas vezes» para se ser tão sério quanto ele. Se calhar até é, mas ninguém está acima de toda a suspeita. Nem o impoluto Cavaco. Não numa corrida eleitoral. Não quando se exerce um cargo público. Não quando se consegue um negócio tão proveitoso na compra e venda de acções de uma empresa dona de um banco que está agora seguro pelo dinheiro dos contribuintes.

Imagino os seus adversários, esfregando as mãos de contentamento: insinuar que Aníbal Cavaco Silva tem explicações a dar sobre um negócio que terá rendido, em menos de dois anos, 140%?

Porque há um português antes da crise e um português depois da crise. E com o buraco do BPN, e a incerteza em relação à resolução do tema, cresce a ansiedade: será que vão outra vez ao meu bolso?

[*Não é verdade que o défice levasse o corte que precisa sem o dinheiro gasto no BPN. Não é verdade porque o Governo chutou para a frente o encaixe dessa despesa. Mas o problema é que a associação de ideias faz sentido: a soma total dos sacrifícios que os portugueses enfrentam este ano bate nas contas do que o Estado gasta com o banco.

Logo... pensar no buraco do BPN, em Cavaco e no negócio proveitoso, nos sacrifícios, no défice e na dívida, faz parte do raciocínio do homem novo que vai nascendo no país, acordado para a dura realidade, preparado para viver dentro das suas possibilidades, passado o choque da verdade].

IN "AGÊNCIA FINANCEIRA"
05/01/11

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