12/02/2011

INÊS PEDROSA






Meter água

Portugal promovido como 
              uma Atlântida com campos de golfe

Portugal é, basicamente, uma extensão de mar, rios e lagos pontuada por algumas aldeias de outrora, um cavalinho de passagem, um ou outro monumento rendilhado, um prato de bacalhau nouvelle cuisine, campos de golfe, apontamentos de modernidade - um auditório estiloso, um museu de design, um oceanário - e varandas boas para namorar por cima das vastas águas. Parece pouco? Falta acrescentar à paisagem as escadarias de uma bela livraria, uma fatia de calçada portuguesa e uma menina de minivestido branco a cantar, debaixo de uma árvore, com um guitarrista de cada lado. Os estrangeiros aos quais se destina esta visão de Portugal poderão concluir, por conseguinte, que o fado é uma música rural e a minissaia branca o seu traje habitual. Mulheres de saia curta debaixo das árvores foram uma das mais infelizes e prolongadas imagens de Portugal - aí está uma tradição já anterior ao 25 de Abril, para os saudosistas. Mas não me parece que valorize o fado que, ainda por cima, está candidato a Património Cultural da Humanidade. O que acabo de descrever é o novo filme de promoção turística de Portugal no exterior - um filme de três minutos e meio, sem palavras, o que poderia ser vantajosamente aproveitado para destacar essa música que comove multidões, do Japão ao Brasil. Mas a música de fundo deste vídeo parece ter sido criada para um elevador de hotel - é indistinta, até nos vagos acordes de guitarra. No fim, quando a mulher entra na água ao sol poente (começáramos com um homem a sair da água ao sol nascente) lê-se: "Portugal: the beauty of simplicity". Entre as coisas simples que o bom povo português faz conta-se o lançamento de balões iluminados nas noites festivas.

Não há nada neste Portugal de exportação que não exista também na Irlanda, por exemplo (excepto os balões saídos de algum festejo oriental, a calçada portuguesa e o bacalhau anoréctico, com duas batatas em tuberculose galopante e umas ervilhas do pós-guerra a acompanhar). Ou em Espanha. Ou em vários outros países.

O turismo, como quase tudo no mundo actual, é uma área cada vez mais especializada - e rentável. Portugal tem todas as condições para se tornar um dos mais desejados destinos turísticos internacionais, e não é só nem especialmente por ter muita água (para fazer surf, regar campos de golfe ou criar cenários românticos). O que Portugal tem de único para vender é cultura: os monumentos, sim - muito mais variados do que os hiperpublicitados Palácio da Pena, Mosteiros dos Jerónimos e da Batalha mostrados neste filme. Mas também a arquitectura contemporânea - Siza Vieira é uma referência mundial, e é português. E a literatura - desse ícone incontestado que é Fernando Pessoa ao Nobel José Saramago. E a pintura - dos painéis de Nuno Gonçalves no fascinante Museu de Arte Antiga à Casa das Histórias de Paula Rego, às obras de Júlio Pomar ou Graça Morais. E a música - o fado, precisamente. Uma campanha que mostrasse o que só em Portugal se pode ver e sentir atrairia ao país um novo e mais lucrativo tipo de turista. O turismo do sol e da praia nunca poderá beneficiar grandemente o país - mares mais quentes, até a Espanha tem. A verdade é que o nosso turismo de areal se esgota nos pubs e nos campos de golfe do popular Allgarve, sem criar grandes receitas nem animar o resto do país. Porque é que o Minho ou Trás-os-Montes nunca aparecem na propaganda externa? Porque é que a cultura de um país internacionalmente popular por causa do fado e de Fernando Pessoa - além das Descobertas - se resume à síntese mais evidente do tricô manuelino ou dos vinhedos do Douro? Porque é que o bacalhau de exportação há-de ter uma cara mais infeliz do que a da Kate Moss nos seus bons tempos? Porque é que de uma gastronomia mais rica do que a Arábia Saudita só se promove a posta do peixe seco?

A resposta estará provavelmente na descrença que temos em nós mesmos, nas dúvidas constantes que nos assombram, vá-se lá saber porquê, sobre a identidade deste país antiquíssimo, e a sua capacidade de atrair estrangeiros. Sugiro aos responsáveis destas campanhas que ouçam os muitos estrangeiros que se naturalizaram portugueses. Eles saberão explicar-lhes o que tem Portugal de diferente e singular. E depois filmem essa diferença, de Norte a Sul - não em voo planado e abstracto, mas no concreto íntimo das cidades, dos museus, das ruas, das personagens inesquecíveis e das suas obras. Portugal não é simples, não; é muito mais belo e específico do que isso.

IN "EXPRESSO"
REVISTA ÚNICA
05/02/11

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