01/02/2011

FILIPE LUÍS







Qualidade da democracia

Há uma decadência da instituição 
                  da Presidência da República

Uma certa histeria que se instalou, a propósito da elevada abstenção, nas eleições presidenciais, transformou-se, a meu ver, numa tempestade em copo-d'água. E mesmo a elevada percentagem de votos brancos, que preconizam, dando razão a Saramago, uma espécie de "ensaio sobre a lucidez", deve ser desdramatizada. Democracias muito mais adultas do que a nossa apresentam níveis de abstenção em massa - e, aqui, o exemplo dos Estados Unidos costuma ser sempre recordado. Trata-se de sociedades civis fortes, eminentemente livres, informadas, onde a intervenção cívica tem muitas outras formas de expressão, e onde o voto é apenas uma delas. Sociedades nas quais os poderes respondem, todos os dias - e não só de quatro em quatro ou de cinco em cinco anos - perante o escrutínio dos cidadãos.

Querem um exemplo? Em Portugal, o Presidente eleito, Cavaco Silva, em vez de responder, com transparência, sobre os contornos de um negócio como o da sua casa de férias, remete para a votação obtida. Para ele, a democracia resume-se ao voto. Sente-se popularmente legitimado e, assim, isento de prestar esclarecimentos. No limite - e sem querer comparar -, Isaltino Morais, condenado, em primeira instância, por instituições judiciais do Estado de direito democrático, estaria automaticamente absolvido pelo voto popular, em Oeiras.

Ora, num país com uma democracia sedimentada um político teria de responder às perguntas da imprensa livre, e teria de cingir-se aos factos, independentemente dos votos. Quer dizer: num país como os EUA, um candidato como Cavaco nem sequer teria chegado às urnas, antes de esclarecer cabalmente o negócio das ações da SLN ou o da casa da Coelha. Eis como num país onde se vota pouco a democracia pode ser mais saudável.

Esta constatação nada tem a ver com juízos de valor sobre a honestidade do Presidente ora re-eleito. É que não há razões para duvidar da sua probidade pessoal - apesar de o seu silêncio contribuir para avolumar suspeitas. O que está em causa é que esta atitude parte de alguém que passa a vida a encher a boca com a expressão "qualidade da democracia". Bem prega Frei Tomás...

Nestas eleições, os portugueses perceberam duas coisas: primeiro, o nível geral dos candidatos era bastante fraco. Não inspiravam suficiente confiança para se acreditar que o voto valia a pena. Em segundo lugar, há, no nosso sistema, uma decadência da instituição da Presidência da República que leva os eleitores a descrer. Isto pode ter a ver com a forma como o cargo foi exercido nos últimos cinco anos: a experiência e a sagacidade do PR em nada contribuíram para evitar o estado a que o País chegou. Ora, disto, Cavaco nem sequer tem culpa. Os poderes do Presidente são, sobretudo, destrutivos: direito de veto, direito de demitir o primeiro-ministro, direito de dissolução do Parlamento. O resto são palavras. Será que, se Cavaco tivesse usado mais a palavra, alguma coisa estaria, hoje, diferente? Receio bem que não.

Uma nota final para os discursos de vitória. Muito se comentou o ressentimento de que o Presidente re-eleito deu mostras. Se uniu, se dividiu, se foi rancoroso, se foi magnânimo... Não vale a pena formular grandes teorias. O que aquelas palavras revelaram foi (para mim) uma desagradável surpresa: falta de classe.

IN "VISÃO"
27/01/11

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